domingo, 24 de julho de 2011

O Guardião Pt. 4

O dragão finalmente estava satisfeito. Agora era só questão de deixar o impetuoso Rorik fazer sua parte, afinal, ele não passava de um soldado, portanto nunca fora páreo para um dragão. O grande dragão ruminava sobre isso quando Issh'tal entrou furioso em seu covil, bradando que Lâmina da Perdição de nada adiantara, e exigindo uma arma melhor. O dragão ouviu as queixas de seu capitão até o dêmonio cansar.
- Posso falar agora? - disse com toda sua pompa, ainda que sua voz monstruosa reverberasse por toda a caverna.
Aquilo bastou para o demônio ficar de joelhos.
- Obrigado.
Então o dragão se aproximou lentamente, ficando com o enorme focinho assustadoramente perto de Issh'tal, e só a aproximação já começou a queimar a pele do demônio. Mas ele não ousaria se mover.
- Meu caro Issh'tal - deu um bocejo antes de continuar, o que fez o demônio arder em chamas. - E quem disse que você era digno de Lâmina da Perdição?
Por fim, uma simples baforada do nariz reduzira o capitão a cinzas, e a foice caiu intacta sobre seus restos mortais, se cravando no chão. O dragão sorria.
- Essa arma pertence a um Guardião.
Agora o dragão esperaria sem pressa por seu novo campeão. Afinal, era apenas questão de tempo...
Rorik acordou com a visão da foice cravada no chão sobre uma pilha de cinzas e sentiu um calafrio lhe percorrer todo o corpo. Porém, o frio permaneceria em seu braço ferido, sem sinal de ir embora. O rapaz se sentia fraco e desejava que tudo não passasse de um pesadelo. Então lembrou das videntes. Sim, elas poderiam ajudá-lo, quem sabe até tratar de seu ferimento. No final das contas, ainda havia esperança para ele e a Guardiã, e aquele pensamento lhe deu forças para sair da cama. "O frio é algo passageiro", dizia a si mesmo, "não vou deixar isso me deter".
Mas o frio que sentia no ferimento não era nada perto da frieza que encontrara fora de sua tenda. Os homens o olhavam de maneira estranha, sem o medo e desconfiança de antes, o que poderia ser positivo se Rorik não visse algo pior em seus olhos: pena. O mesmo olhar que tantas vezes vira ser direcionado a soldados moribundos. Alguns até mesmo assentiam com a cabeça quando ele passava, como se quisessem encorajá-lo, enquanto outros pareciam envergonhados. Logo descobriu que fora a Guardiã que dissera aos homens de sua condição, pedindo que tomassem conta dele e deixassem apenas o imprescindível sob sua jurisdição, porque ela não poderia estar sempre presente para protegê-lo. De fato, partiria em busca de uma cura, sem dar nenhum prazo de seu retorno.
Por um lado Rorik sentiu-se grato, até mesmo comovido, mas por outro não gostava nem um pouco daquela história, principalmente da idéia de ela lhe dar ordens. Não bastava ser Rorik, o Enfermo, também era Rorik, o Incapaz. Aquilo tudo deixou seu humor ainda mais negro. Além disso, não gostava de pensar nela longe de sua visão, ainda mais se arriscando à toa, quando era ele que resolveria a situação. Mas com o passar dos dias, enquanto se preparava para partir em viagem, dava por si pensando em quando veria a Guardiã novamente acima de qualquer outra preocupação, que aumentava diariamente à medida que o ferimento no braço piorava. Mas logo descobriu que empunhar Fagulha-na-Noite amenizava a dor.
Ele partiu na calada da noite para evitar que alguém tentasse impedi-lo, levando consigo um cavalo veloz de pequeno porte e poucas provisões, uma vez que seus espiões diziam ter encontrado um templo das videntes nas montanhas do extermo norte, que não ficavam muito longe. Sem contar que poderia pilhar nas aldeias que ficavam no caminho. Rorik não gostava da idéia de roubar, mas não queria levantar suspeitas acerca de seu paradeiro. Agora deveria se tornar Rorik, o Ladino.
Não encontrou maiores dificuldades no caminho. Porém, se foi fácil chegar até o pé das montanhas, escalar uma delas não seria tão simples. Arriscaria a maior delas para evitar qualquer desperdício de forças, e se fosse a montanha errada não precisaria subir mais, apenas descer. Mas não seria uma missão fácil.
A princípio tudo correu como o esperado, embora fosse um avanço lento e frustrante, com muitos revéses e ida e voltas. O lugar parecia mais um labirinto do que uma montanha e o frio crescia a cada dia que passava. E foi na noite mais fria de todas que algo inusitado ocorreu. A dor no braço de Rorik era quase insuportável e nem mesmo Fagulha-na-Noite lhe trazia algum alívio. De fato, o brilho da espada parecia diminuir à medida que ele subia mais e mais, e Rorik não sabia dizer se era por estar longe da Guardiã, o que até então seria a hipótese mais plausível, ou se algo ou alguém na montanha afetava seu poder. O rapaz pensava no assunto do fundo de sua barraca quando um clarão roxo iluminou os céus com um estrondo similar ao de um trovão, só que ao invés de diminuir até cessar o som aumentava, e o pior de tudo era que vinha montanha abaixo, na direção de Rorik. Ele escapou da avalanche por detalhe e só tinha Fagulha-na-Noite em punho. Todo o resto se perdera.
Rorik não sabia explicar o que tinha acontecido, mas fosse o que fosse tinha certeza que não estava mais sozinho. Ou seja, estava próximo de seu destino, porque ninguém nunca disse que as videntes eram amistosas.
Outras armadilhas aguardavam no caminho, mas Rorik superou todos os obstáculos, até atingir um platõ. Mais acima, no ponto mais alto da montanha, havia uma espécie de templo feito de árvores curvadas para dentro, e lá não havia neve. De fato, havia até mesmo vegetação, flores e plantas dos mais diversos tipos, como um oásis no deserto gelado. Rorik não deu mais de dez passos antes de ser impedido por uma voz na escuridão.
- Parado aí, Guardião.
Era uma voz de mulher, provavelmente idosa, embora não desprovida de força. Sussurros seguiam as palavras. Rorik hesitou.
- Por que me chama assim?
- Está previsto - disse a voz de imediato, sendo acompanhada pelos sussurros. Rorik percebeu que eles repetiam o que a primeira voz dizia. E também eram vozes femininas, só que menos graves.
De repente a voz tomou forma, revelando uma mulher de manto roxo e pés descalços, e mais atrás surgiram outras três, todas vestidas da mesma forma. Elas usavam o manto por cima da cabeça, ocultando metade do rosto. Como Rorik imaginava, a mulher na frente era bem mais velha do que as outras, quase cadavérica. Dois círculos de um roxo mais escuro brilhavam através do pano no lugar onde deveriam estar seus olhos. As outras três não tinham a mesma sorte e pareciam não enxergar, porque andavam agarradas uma às outras, como se buscassem equilíbrio. Mas Rorik não tinha muita paciência para aquele tipo de coisa.
- Explique-se.
- Apenas uma pergunta, Guardião - disse a velha, erguendo um dedo ossudo. - Só uma.
- Isso é o que veremos, anciã.
Então ergueu Fagulha-na-Noite e imediatamente as três mulheres mais jovens soltaram um guincho agudo. O som era tão alto que Rorik derrubou a espada.
- Você ousa trazer uma arma dos divinos para uma casa de conhecimento? - gritou a velha. - Deveria matá-lo aí mesmo!
Rorik se agachou para tentar pegar Fagulha-na-Noite, mas descobriu que tinha perdido todo o movimento do braço direito, então caiu no chão sob o barulho ensurdecedor dos gritos. Ele ouviria seus próprios gritos de dor se eles não estivessem abafados pelos berros das mulheres.
- Se livre dela que eu faço elas se calarem, Guardião! Chute-a montanha abaixo!
- Não!
- Faça agora ou não terá nenhuma das duas respostas que procura!
Com um grito de raiva Rorik se ergueu e chutou a espada pela beirada do platô. Ele acompanhou sua queda com desgosto, seguindo o rastro deixado por seu brilho, até vê-la desaparecer ao atingir uma nuvem. Então a velha afugentou as jovens com um grito ainda mais alto. Quando se virou outra vez, Rorik estava em cima dela.
- Veja o que me fez fazer! - tinha agarrado o pulso da velha com a mão boa e gritava rente a seu rosto. - Terei minha resposta agora?
- Você ousa pôr as mãos em uma vidente? - disse ela em tom ofendido. - Saiba seu lugar, garoto!
A velha soltou o pulso com um movimento rápido e tocou no ferimento de Rorik com a ponta do dedo indicador. Rorik gritou de dor e caiu de joelhos. Rindo, a velha mantinha o dedo na ferida.
- Você não passa de um garotinho vaidoso e orgulhoso que não sabe seu lugar! - deu uma risada. - Como diminuiu o padrão de seleção dos divinos!
Ela gargalhou mais uma vez e subitamente tirou o dedo da ferida. Rorik caiu de lado, levando a mão ao ferimento. Nunca sentira tanto frio.
- Não que alguma vez tenha sido muito alto...
A velha se afastou e deixou Rorik agoniando no chão.
- Bom, venha se ainda estiver vivo. Nenhuma vidente jamais negou conhecimento, mesmo que seja para um rapazinho burro como você. Corajoso, sem dúvida, mas burro.
Rorik se levantou com alguma dificuldade, amaldiçoando a própria estupidez, então seguiu a velha. Ela o conduziu por uma escada escavada na pedra, depois por um caminho que dava uma volta em torno de um penhasco, e finalmente por outra escada que levava ao topo do mesmo penhasco, onde se erguia o templo que Rorik vira antes. Era quente lá em cima e o ar tinha um cheiro agradável.
A velha notou a curiosidade do rapaz e sorriu.
- Isso que você está vendo é magia, Guardião, não um daqueles truques que os divinos usam para se exibir. O que nós usamos vem da terra e volta para a terra, sem nenhum acordo, preço ou sacrifício. Tudo que é natural vem de graça. Tente se lembrar disso.
Rorik seguiu a velha até a entrada do templo, onde havia uma bacia e uma ânfora sobre uma mesa de pedra rodeada por flores, e foi para lá que os dois se dirigiram. As outras mulheres observavam da entrada do templo.
- Não se preocupe com elas, Guardião, venha.
- Por que você me chama de Guardião?
- Porque é o que você é, não? Ou se é uma coisa ou se não é, mesmo que ainda não se tenha tornado, ou por algum motivo tenha deixado de ser.
A velha falava enquanto enchia a bacia com a água cristalina da ânfora. Ela se posicionou do outro lado da mesa e fez sinal para Rorik se aproximar.
- Agora se aproxime.
Hesitando, Rorik obedeceu. Ele olhou dentro da bacia e só enxergou o próprio reflexo na água.
- Esvazie a mente e me faça uma das duas perguntas que realmente deseja saber a resposta. Mas tenha cuidado! Porque uma representa a morte e a outra representa a vida.
Rorik tirou os olhos da bacia e olhou para o céu em busca de compreensão. De fato tinha duas perguntas a fazer: a primeira dizia respeito a Guardiã, se havia como livrá-la de seu serviço e assim libertar Lyanna, e a segunda interessava o próprio Rorik, que procurava uma cura para o veneno de Lâmina da Perdição. Ele não se via capaz de escolher entre uma ou outra, portanto ficou um bom tempo olhando o céu, até que de repente uma estrela surgiu onde antes havia uma nuvem, o que fez Rorik sorrir. Era tudo o que precisava para tomar uma decisão.
- As estrelas são belas, não é? - disse a velha de repente, seguindo seu olhar. Rorik olhou para ela e assentiu com um sorriso sonhador no rosto. - Mas também são tão frias e distantes.
As palavras da velha fizeram o sorriso parecer falso em seu rosto, mas ele tirou qualquer receio da mente, dando por si pensando em Lyanna. Não podia deixar de pensar em seu sorriso, no modo delicado que ela se movia, seu toque gentil...
- Vejo que tomou sua decisão, Guardião.
Rorik assentiu. Mesmo que não conseguisse a resposta que esperava e perdesse a chance de encontrar uma cura, a Guardiã podia dar sorte em sua busca pelo mesmo objetivo, e sem dúvida ficaria grata com a sua tentativa de libertá-la, então poderia mudar de idéia a seu respeito. Ele confiava nela a ponto de tomar essa decisão sem pensar duas vezes.
- Como pode se libertar um Guardião do serviço?
A velha fez um ruído de compreensão e tocou com a ponto do dedo indicador no meio da bacia.
- Agora olhe dentro da bacia.
- O que eu verei?
- Eu só posso responder o que diz respeito a você, Guardião, e para tanto eu preciso ver o que lhe aguarda, aquilo que já foi determinado, quer você saiba ou não. Agora... olhe.
Rorik se aproximou e a princípio não viu muita coisa além das ondulações na água. Então, de repente, viu um rosto se formar na bacia. A primeira coisa que chamou sua atenção foi a esqualidez do rosto, tão cadavérico quanto o da velha, depois viu uma barba negra muito comprida, e por fim um par de brilhantes olhos azuis. Então teve uma súbita visão da foice prestes a atingir seu rosto e caiu para trás dando um grito de terror.
- O que isso significa? - gritou para a velha, sem fôlego.
Ele levantou e olhou outra vez para a bacia, mas dessa vez viu o próprio reflexo novamente. Olhou para a velha em busca de compreensão.
- Bem - começou a velha, se afastando da mesa e caminhando para a beira do penhasco, onde ficou fitando a distância. - O único método que eu conheço para livrar um Guardião do serviço é tomando seu lugar, mas um indivído precisa atingir uma série de critérios para tanto, como ter recebido o toque por exemplo. Agora, o que isso tem a ver com você, meu jovem, é uma história completamente diferente...
- Responda de uma vez - rosnou Rorik, que tinha a cabeça parecendo subitamente pesada, sem falar no frio que já tomava metade de seu tronco.
- Muito bem - disse a velha e se virou para ele. - Mas saiba que esse caminho só lhe trará morte, Rorik Deschain.
Então a velha deu a resposta.
Algumas semanas se passaram até Rorik descer a montanha, portanto tinha uma barba negra cobrindo o rosto, além de estar bem magro. Não pudera encontrar Fagulha-na-Noite e o frio do veneno começava a afetar seu outro braço. Ele deu uma última olhada para a montanha antes de seguir seu caminho, lembrando de todas as dificuldades que passou até atingir seu topo, somente para voltar sentindo ainda mais frio. Além disso, perdeu o pouco que levara consigo, inclusive sua espada como não se permitia esquecer, só ganhando em troca o conhecimento sombrio das videntes. Tampouco poderia partilhar com a Guardiã o que tinha descoberto. Para completar, não tinha cavalo e a aldeia mais próxima ficava a muitos quilômetros de distância, então deveria prosseguir a pé por mais alguns dias. De repente se deu conta que sequer planejara a viagem de volta e a descoberta fez um arrepio percorrer toda a extensão de sua espinha.
Não demorou muitos dias e Rorik viu que uma tempestade se aproximava. Redemoinhos de neve desciam montanha abaixo, cobrindo tudo de branco, e naquela mesma noite caíram sobre ele. À medida que avançava, Rorik percebeu que sua única esperança era encontrar alguém no caminho, embora não fosse muito provável. De fato, perdera todo o senso de direção, então deu por si andando em círculos. Rorik já tinha aceitado a morte quando enxergou um brilho tênue acima dos redemoinhos. Lágrimas brotaram de seus olhos e se congelaram em seu rosto quando viu que se tratava de uma estrela, provavelmente a mesma que vira no topo da montanha, e usando ela como guia conseguiu achar uma saída da tempestade, encontrando abrigo em uma aldeia. As estrelas podiam estar distantes, mas nem por isso deixavam de oferecer calor.
Porém, estava muito doente devido ao frio e a fome, além de ter perdido a sensibilidade da parte superior do corpo, portanto era incapaz de prosseguir por conta própria. Os aldeões não o conheciam e nada podiam fazer para aplacar seu frio. Ninguém na região tinha visto doença como aquela, uma febre gelada, que também não era hipotermia. Rorik tinha breves períodos de lucidez, mas geralmente passava os dias dormindo, perdido em pesadelos. O anjo da morte agora era ele e ninguém podia detê-lo. Homens, demônios, todos caiam sob sua foice. Certa vez viu até mesmo a Guardiã em seu caminho, e por mais que tenha tentado impedir não pôde evitar avançar sobre ela, subjugando-a com facilidade. Mas quando se aproximou para dar o golpe fatal ela se transformou em Lyanna e a foice parou na metade do caminho. A mulher tinha lágrimas nos olhos e o olhava com terror, implorando para ser poupada, e Rorik só queria deter suas lágrimas, vê-la sorrir novamente, mas nas mãos só tinha Lâmina da Perdição. Então acordou e chorou de medo pela loucura que tomava conta dele.
Quando desmaiou novamente teve um sonho estranho no qual estava voando e podia ver o mundo todo lá embaixo. As montanhas, o deserto, o Abismo lançando sua fumaça e até mesmo as poucas florestas que restavam, lá no Sul. De repente estava de volta em sua cama, no calor de sua tenda, e a Guardiã fazia vigília por ele. Por um momento Rorik achou que tinha morrido e aquele era o Paraíso. Não só isso, como desejava que fosse verdade, porque não queria se tornar o anjo da morte. Acima de tudo, não queria machucar Lyanna. Então imaginou seu funeral, a mulher chorando agarrada em seu corpo e todos os homens reunidos em sua volta, viu sua mãe e os irmãos mais ao longe, com Gilead ao fundo antes de sua queda. Trombetas soavam de toda parte, saudando Rorik como herói, e todos com excessão de Lyanna estavam felizes. Mãos começaram a erguer seu corpo e a mulher lutava em vão para impedir. Rorik sentiu raiva dela. Não entendia que se ele morresse o anjo da morte não poderia machucá-la? Dessa forma ela seria feliz. Todos seriam felizes. Porque Rorik era o anjo da morte e só trazia desgraça aqueles a sua volta.
Mas então sentiu uma mão quente sobre a sua, aplacando o frio. Logo percebeu que estava recuperando a sensibilidade da parte superior do corpo. O braço direito continuava frio, mas retornara ao estado do dia em que sofrera o corte, como se não tivesse passado um dia desde então. Não demorou muito e Rorik conseguiu abrir os olhos. No começo tinha a visão turva, ainda se acostumando à claridade, mas logo o rosto de Lyanna começou a tomar forma. A princípio Rorik sorriu, só que não demorou a ver que a mulher estava em agonia. Ela estava massageando seu braço com as duas mãos, através das quais emanavam um brilho amarelo, e Rorik viu a parte da armadura que cobria todo o seu braço passar para ele, envolvendo seu membro ferido. Ele podia ver que aquilo era extenuante para Lyanna, mas o alívio era tamanho que não pôde evitar que ela fosse até o fim. Quando terminou, Lyanna desabou no chão, ao lado da cama.
- Está feito - disse ela, sem fôlego. - Não está curado, mas é o melhor que eu posso fazer.
Rorik não pôde evitar se sentir culpado. Ele pousou a mão sobre sua cabeça, sem saber o que dizer.
- É do seu agrado? - perguntou ela, magoada.
- Obrigado - se resumiu Rorik a responder. - Perdão.
Então fez um carinho em seu rosto, agradecido. Ele não sentiu a pele dela, afinal, tinha o braço protegido pela armadura, mas mesmo assim ela sorriu ao seu toque.
- Preciso descansar agora.
Lyanna se ergueu com dificuldade e deu um longo bocejo. Rorik pensou em convidar ela a lhe fazer companhia, mas sabia que ela não aceitaria. Não agora pelo menos. Mais uma vez a viu se retirar e não disse uma palavra. Porém, ela hesitou diante da aba de abertura, olhando rapidamente para trás.
- O que você foi fazer nas montanhas afinal?
Rorik já tinha pensado no que iria responder se lhe fizessem essa pergunta.
- Fui atrás das videntes, ver se elas poderiam nos ajudar.
Lyanna olhou para ele com um misto de desaprovação e condescendência.
- E encontrou alguma coisa?
- Não.
Ela suspirou.
- Melhor assim.
Sorrindo, se aproximou de Rorik e lhe deu um beijo na bochecha.
- Você vai ficar bem? - perguntou Rorik antes de ela sair.
Ela se virou e deu um sorriso cansado.
- Já sou bem grandinha, Rorik, sei cuidar de mim mesma - então apontou o dedo indicador para ele. - Mas você trate de se cuidar.
Rorik riu.
- Sim, senhora.
Então ela fez uma reverência e quando se ergueu outra vez já era a Guardiã. Foi ovacionada quando saiu da tenda. Rorik permaneceu um longo tempo sorrindo, pensando em quando a veria novamente. Por ela, enfrentaria a escuridão. Por ela, enfrentaria até mesmo o anjo da morte. E naquela noite Rorik não teve nenhum pesadelo.
Dessa vez até mesmo o dragão permitiria que Rorik, o Penitente, e Lyanna Estrela-Guia tivessem um momento de paz...

sexta-feira, 22 de julho de 2011

O Guardião Pt. 3

Apesar de tudo estar saindo de acordo com os planos do dragão, ele ainda não estava satisfeito. Por isso visitou as câmaras fumegantes do Abismo com o intuito de forjar a arma mais terrível já criada, usando suas próprias escamas como matéria prima, devido a sua impenetrabilidade. Terminado o trabalho, ele desceu novamente para ter com Tecedeira, e a aranha mais uma vez fez sua parte, batizando a lâmina com seu veneno. Por fim, o dragão convocou o capitão de sua guarda, um demônio da mais pura estirpe, e lhe entregou a arma, com a qual ele ceifaria o exército inimigo. Logo ela ficaria conhecida como a Lâmina da Perdição, uma foice feita toda em pele e aço, trazendo ruína a todos que cruzassem seu caminho. Porém, nada foi dito sobre o destino de quem a empunhasse, bem como era a intenção do dragão...
Mas Rorik também não estava satisfeito.
Isso porque a Guardiã desapareceu sem dar nenhuma explicação após o episódio na duna, e quando voltou, quase um mês depois, agia como se nada tivesse acontecido. E, durante sua ausência, Rorik procurou todos os clérigos a seu serviço, querendo saber notícias de sua amada, enquanto a guerra ficava em segundo plano. Porém, eles foram de pouca ajuda, portanto Rorik começou a questionar sobre a natureza dos celestiais, especificamente a respeito dos Guardiões, se não havia como livrar um Guardião do serviço. Em seu íntimo, via nessa possibilidade a única chance de eles ficarem juntos, bem como poupar a Guardiã de seu sofrimento. Ele só precisava vencer a guerra, então poderia cuidar dela. Era o mínimo que podia fazer por sua estrela-guia.
Apreensivos, os clérigos não incentivaram aquela conversa, mas depois de muito insistência da parte do rapaz, disseram que as videntes poderiam saber algo a respeito, embora tenham avisado que nada bom poderia sair do contato com elas, nem da ambição em mudar o que fora estabelecido pelos deuses. Rorik não deu ouvidos a eles e se retirou do templo sob os gritos de "blasfêmia".
Naquela mesma noite, após passar horas olhando em vão para o céu vazio, Rorik teve um pesadelo no qual uma terrível escuridão surgia do Abismo, logo em seguida sendo acompanhada pelo forma maciça do dragão, todo envolto em sombras. Só que dessa vez a Guardiã não estava lá para lutar em seu lugar. Ao invés disso, a mulher por trás da armadura estava sozinha na duna deles e gritava de terror, prestes a ser engolida pela escuridão. Mas a atenção do dragão estava toda sobre uma aldeia de muros altos, embora parecesse muito frágil diante do perigo que se aproximava, e Rorik não demorou a perceber que se tratava de Gilead, o lar ancestral da famíla Deschain. Ele também não demorou a perceber que não poderia salvar a ambos. Percebendo a dúvida de Rorik, a mulher começou a gritar por seu nome, implorando para que ele viesse salvá-la. Sem nem pestanejar, o rapaz correu na direção dela.
Atrás dele, Gilead ardia em chamas, e das cinzas surgiu uma figura esquelética e alada segurando uma foice, só uma silhueta diante do fogo. Ele ceifava a vida dos aldeões como um verdadeiro anjo da morte e não havia mais nenhum sinal do dragão.
Por sua vez, Rorik só tinha olhos para a mulher. Ela estava aguardando por ele de braços abertos, agradecida e emocionada, mas uma estranha transformação ocorria à medida que o rapaz se aproximava, mudando a forma da mulher para algo aterrorizante. Sua pigmentação começou a escurecer e novos membros surgiam do seu tronco rasgando a pele como se fosse papel, até que toda a pele se desfez em pedaços, revelando uma monstruosidade peluda e com oito olhos cintilantes, diante dos quais Rorik se viu reduzido a uma presa. Então a fumaça vinda da aldeia em ruínas avançou sobre os dois, cobrindo tudo de negro, e da escuridão só se ouvia um bater de asas lento e contínuo, cada vez mais próximo. De repente, uma lâmina em forma de lua cintilou no ar e Rorik desembainhou Fagulha-na-Noite, iluminando a escuridão a tempo de ver a lâmina da foice caindo sobre ele, impossível de ser detida. Porém, o mais assustador de tudo não era a morte eminente, e sim os brilhantes olhos azuis da criatura segurando a foice, tão parecidos com os seus.
Rorik acordou gritando, querendo o calor de sua estrela. Mas só sentia frio.
Na manhã seguinte pretendia ir atrás das videntes, mulheres misterioras que viviam nos picos mais altos das montanhas e diziam ter acesso a uma estranha fonte de energia, que supostamente lhes permitia vislumbrar o futuro. Alguns chamavam de magia, outros de blasfêmia. Só que no instante em que arrumava suas coisas para partir viu o familiar risco brilhante no céu e seu coração se encheu de expectativa. Ele correu na direção dele e sequer desviou os olhos diante da explosão de luz que sempre prenunciava a chegada da Guardiã. Então ela se ergueu, majestosa.
Rorik se aproximou devagar, sorrindo.
- Já estava ficando preocupado - disse animadamente. - Aquele dia, na duna...
Mas ele parou diante da virada de cabeça abrupta da Guardiã.
- Não sei do que está falando.
De imediato, ela alçou voo, parando do outro lado do acampamento para atender os feridos. Rorik ficou parado, sem entender. Teria sido tudo obra de sua imaginação? Ele permaneceu paralisado até ser chamado por um de seus capitães. O inimigo se movia mais uma vez, portanto as videntes teriam de esperar.
Rorik fez bom uso da distração, protagonizando uma matança poucas vezes vista, da qual saiu incólume. No final foi preciso quase meia dúzia de seus próprios soldados para detê-lo tamanha era a sua fúria. Fagulha-na-Noite pingava sangue e Rorik a olhou com desprezo. Então jogou a espada aos pés da Guardiã e nem esperou para ver sua reação.
Naquela noite prometeu a si mesmo que não visitaria a duna, mas aqueles brilhantes olhos azuis do pesadelo pertubavam sua mente e talvez a Guardiã não quisesse demonstrar nada diante dos outros, por isso se fez de desentendida. Como pudera ser tão burro? Era óbvio que se tratava disso. Então saiu xingando para o céu estrelado. E lá estava ela, sozinha na duna. Algo naquela visão fez os olhos de Rorik se encherem de lágrimas. A lembrança de arremessar Fagulha-na-Noite na direção da Guardiã fez ele sentir uma culpa tremenda, como se tivesse violado alguma lei divina, embora em seu íntimo não pudesse pensar em nenhuma. Mas não adiantava. Tinha ferido sua estrela, a única coisa no mundo todo que queria proteger, então aceitaria qualquer retribuição de sua parte.
Ele se aproximou com a cabeça baixa e ficou de joelhos diante dela. Então... nada. Rorik ergueu os olhos e percebeu que ela sequer percebera sua presença. Mas não iria dar o braço a torcer, ah, não, permaneceria ali até ser notado. E ele permaneceria. E permaneceria.
Foi só quando a cor do céu começou a mudar de preto para um azul-arroxeado que a Guardiã se virou para olhar Rorik. Ela tirou Fagulha-na-Noite da bainha e ofereceu o cabo ao rapaz.
- Sua espada, cavaleiro.
Rorik olhou a espada e depois o rosto metálico da Guardiã. Ele hesitou no primeiro momento, mas logo entendeu que não haveria outra oportunidade de receber seu perdão se não aceitasse a espada de volta, independente de aquilo ser digno ou não. Então pegou no cabo da espada com todo o cuidado do mundo e a depositou de volta à bainha presa em seu cinto. Mas antes mesmo de ficar sobre os dois pés a Guardiã já tinha alçado voo.
Mesmo assim sentiu um tremendo alívio, como se tivesse tirado um peso enorme das costas. Agora estava tudo em ordem outra vez. E era só ele nunca mais machucar a Guardiã que continuaria assim. Entretanto, Rorik teve o mesmo pesadelo da noite anterior durante um cochilo, só que dessa vez acordara com sede de batalha. Outro dia de matança aguardava Fagulha-na-Noite.
As batalhas seguintes seguiram o mesmo padrão, mas os soldados aprenderam a evitar seu comandante, deixando caminho livre para ele destroçar os inimigos. Rorik proporcionava verdadeiros espetáculos de morte e se enclausurava em sua tenda após terminar o serviço. Até que começaram a surgir rumores sobre um capitão do exército inimigo que adquirira a fama de imbatível, pois diziam que ele possuía uma arma tão formidável quanto a de Rorik, através da qual poderia equilibrar a disputa. Não demorou a chegarem informações a respeito da tal arma. Todos olhavam Rorik esperando que ele fosse dar combate com o mesmo entusiasmo de sempre, mas mal sabiam eles dos pesadelos que tiravam o sono do rapaz, muito menos que envolviam uma foice como a do capitão inimigo. O exército inimigo se aproximava e Rorik permanecia impassível.
Os estandartes feitos de pele e ossos já podiam ser vistos à distância, mas ninguém ousava adentrar a tenda de Rorik, tamanho era o medo de despertar sua ira. Ele ordenara que mudassem sua tenda para o alto da duna, dizendo que assim teria uma visão melhor do campo de batalha, quando na verdade só queria poder enxergar a chegada da Guardiã antes de qualquer um. Porque embora não ficassem a sós desde que fizeram as pazes, Rorik queria ver a Guardiã mais do que tudo e dividir seus medos com ela, assim como a própria mulher dentro da armadura dividira com ele. Só que dessa vez não iria até ela. Não, agora era a vez dela procurá-lo, do contrário que lutasse sem ele.
Rorik estava sentado sem camisa na cama, olhando fixamente para a armadura desmontada no chão, e também para Fagulha-na-Noite, que jazia embainhada ao lado, quando uma mão metálica levantou a aba de entrada, através da qual entrou a Guardiã. Mas Rorik só olhou de soslaio para ela e voltou a encarar o chão. A Guardiã se aproximou em silêncio e viu aquilo tudo com um ar de confusão.
- Por que não está pronto? - perguntou ela de repente. - Os exércitos já estão diante um do outro lá fora.
Rorik fez um ruído de compreensão.
- É por isso que veio aqui então? - tinha um sorriso irônico no rosto quando disse aquilo e então se curvou para pegar Fagulha-na-Noite.
Por um momento a Guardiã ficou sem reação, mas logo encontrou palavras.
- Por que outro motivo eu viria aqui? - indagou ela, curvando a cabeça para o lado como um gato, embora sua voz não soasse tão firme como de costume.
- Não sei, me diga você.
Dessa vez a Guardiã ficou sem resposta. Rorik tinha virado as costas para ela e começado a afivelar o cinto, ajustando a bainha da espada, quando sentiu uma mão delicada percorrer toda a extensão de suas costas. Ele tremeu de excitação com o toque e ficou sem reação por alguns instantes. Por algum motivo aquilo o fez lembrar do pesadelo e a terrível metamorfose da mulher dentro da armadura, quando ela se transformou em algo saído do Abismo, prenunciando a chegada da escuridão. Mas logo tirou o pensamento da cabeça e se virou de novo para a Guardiã, que agora já estava mais afastada, embora ainda tivesse as duas mãos expostas.
A princípio nenhum dos dois arriscou dizer nada, apenas ficaram ouvindo os rugidos que vinham de fora, esperando o outro falar primeiro. Então a Guardiã baixou a cabeça para a altura do peito de Rorik e ele seguiu os olhos dela. Ali estava seu peito nu cheio de cicatrizes feias e mal cicatrizadas, muito piores que qualquer ferida da mulher dentro da armadura, e elas estavam espalhadas por todo seu corpo. De repente, a Guardiã revelou o rosto.
- Eu... - balbuciou ela, desviando o olhar. Tinha uma aparência cansada e confusa. - Eu posso dar um jeito nisso.
Rorik não pôde evitar sentir um pouco de pena dela. Então deu um sorriso orgulhoso.
- Guarde para quem precisa.
Virou as costas e tratou de vestir a armadura. Não ouviu a Guardiã se retirar, portanto sabia que ela continuava na tenda.
- Você vem então?
Rorik deu de ombros.
- Acho que você consegue se virar um pouco sem mim.
Não demorou muito e ele ouviu o farfalhar das asas da Guardiã, que rasgou a lona ao sair, sendo ovacionada pelos homens. Rorik sorriu de amargura ao ouvir aquilo. "Estou ganhando essa guerra sozinho e ela que recebe os aplausos?", pensou enquanto colocava o elmo. Não sabia explicar o motivo, mas se sentia muito cansado, como se tivesse acabado de resistir a uma força invisível. Tinha os passos pesados quando saiu da tenda. De súbito se fez o silêncio, porque lá vinha Rorik em toda sua glória, trajado como um verdadeiro senhor da guerra. Foi então que notou os olhares desconfiados e assustados dos homens, a forma como cobiçavam Fagulha-na-Noite, embora não ousassem tentar tirá-la de sua posse. Tomado de uma súbita tristeza, Rorik se deu conta que não era visto como um igual, e também não era um celestial como a Guardiã, portanto não era uma coisa nem outra. Era Rorik, o Pária.
Mas outra coisa acabou chamando sua atenção. Olhou de um lado para o outro, mas não viu a Guardiã em lugar algum. Então chamou um de seus capitões e ficou sabendo que ela tinha reunido os homens mais descansados para dar combate à vanguarda inimiga, comandada por Issh'tal e sua Lâmina da Perdição. Mais uma vez, ela tinha ido lutar em seu lugar. Rorik organizou as coisas da melhor forma que pôde e partiu atrás dela, temendo o pior.
Quando chegou no campo de batalha viu duas tropas menores se degladiando, enquanto o grosso de ambos os exércitos ainda tentava se organizar, uma vez que tinham ficado sem liderança. Rorik não demorou muito a entender a estratégia do inimigo. A Guardiã tentava atrair Issh'tal para combate singular, mas o demônio era esperto e evitava suas investidas, preferindo ferir os inimigos mais frágeis, o que além de reduzir pouco a pouco a tropa da Guardiã, desviava sua atenção da batalha. Ela não sabia se lutava ou protegia seus homens. E daquela forma o inimigo venceria antes mesmo da batalha começar.
Rorik reuniu uma pequena tropa para repor as perdas da Guardiã e se atirou no meio da batalha. Issh'tal sorriu ao vê-lo e então voltou sua foice à Guardiã, que aproveitava a chegada do rapaz para tratar dos feridos, portanto estava vulnerável. O demônio mandou todo a sua tropa para cima de Rorik e foi lentamente na direção da Guardiã, arranhando o chão com a ponta da lâmina enquanto se aproximava, e no calor do momento Rorik só pôde desembainhar Fagulha-na-Noite e arremessá-la contra Iss'tal, ficando desarmado diante de toda a tropa inimiga. O inimigo caiu em cima dele antes que pudesse ver se se sua manobra dera resultado. Rorik sabia que entre ele e a Guardiã, seus homens escolheriam a segunda, e inclusive contava com isso. De repente ficou tudo escuro e só o que Rorik sentia era dor.
Seu mundo era todo feito de escuridão e ele finalmente estava em paz, mas então ouviu alguém gritar seu nome, e não era uma voz metálica. Era uma voz feminina e cheia de emoção. Rorik sentiu tanta alegria naquele momento que poderia morrer. De repente seu mundo se enchera de luz, e quando deu por si viu a Guardiã dando combate a Issh'tal com as duas espadas em mãos, enquanto o demônio recuava diante de sua fúria. Rorik foi erguido por seus homens e viu a tropa de Issh'tal reduzida a cinzas.
- Ela salvou a sua vida, senhor - disse um deles. - Foi uma luz brilhante como eu nunca vi na minha vida.
As lágrimas corriam soltas no rosto desfigurado de Rorik, que se desvencilhou das mãos que o seguravam e avançou cambaleando para onde a Guardiã e Issh'tal travavam combate singular, tudo isso enquanto o grosso de ambos os exércitos finalmente se juntava à luta, chocando escudos com um baque ensurdecedor. Mas Rorik pouco ligou para aquilo, só tratou de avançar e avançar, escapadando da morte por detalhe inúmeras vezes, enquanto a batalha se desenrolava a sua volta. E não foi com surpresa que ele viu a Guardiã mais uma vez dar a Issh'tal a oportunidade de dar cabo dela, pois ela embainhara Fagulha-na-Noite para poder lutar com uma mão e curar com a outra, ficando em desvantagem em relação a arma de duas mãos do demônio. Rorik previra aquilo e chegou a tempo de impedir com as próprias mãos um golpe que de outra maneira seria fatal. Ele segurou com as duas mãos o cabo irregular da foice, sendo perfurado no processo e lutando com Issh'tal pela posse da mesma, e ainda receberia um corte no braço antes da Guardiã finalmente despachar o demônio. Ferido, Issh'tal bateu em retirada, deixando um Rorik irreconhecível nos braços da Guardiã.
- Ah, Rorik - disse ela com o rosto à mostra, derramando lágrimas. Uma mão exposta acariciava seu rosto.
- Por que você faz eu me machucar assim?
Não havia ausência de mágoa na voz de Rorik, mas mesmo assim ele agarrou a mão da Guardiã junto da dele, desmaiando enquanto olhava aquela que para ele era a maior preciosidade do mundo, ainda que o céu e o inferno estivessem entre os dois. E era a mulher que Rorik amava, não a Guardiã.
Quando acordou em sua tenda, sem fazer a menor idéia de quanto tempo se passara, Rorik tinha sido curado de todos os ferimentos da última batalha, com a excessão do corte que recebera no braço. O mais estranho era que a ferida era gelada ao toque e todo o braço de Rorik parecia frio. Mas um movimento na escuridão tirou aquilo de sua mente. Ele tateou nervosamente a cama em busca da espada, mas de repente viu seu brilho cortar o ar, e das sombras surgiu a mulher por dentro da armadura, vestindo roupas comuns e com Fagulha-na-Noite em punho. Seus olhos estavam marejados e cheios de emoção, mas um sorriso travesso tentava em vão esconder o fato, como se fossem um segredo. Rorik nunca a achara tão bela.
- Procurando por isso? - então deu uma gargalhada agradável e sentou na cama. Ela deu um toque delicado no ombro de Rorik, como se quisesse dizer alguma coisa e não soubesse como, então embainhou a espada e a colocou gentilmente do lado dele.
Rorik absorvia cada movimento dela como se fosse o mais suave néctar. Ela o olhava sem entender.
- O que foi?
Ali estava ela, diante dele e totalmente exposta como sempre sonhara, mas Rorik subitamente ficou sem palavras. A visão da aranha do pesadelo fez ele franzir o cenho, e aquilo pareceu aumentar o frio que tomava conta de seu braço, então deu por si querendo chorar.
- Meu braço - disse finalmente com alguma dificuldade.
Uma sombra perpassou o rosto da mulher, mas ela logo engoliu em seco, se forçando a falar. Antes disso, porém, pousou a mão no peito de Rorik, como se aquilo fosse aliviar o peso do que diria a seguir.
- Eu não consegui curar - sua voz soou fraca, mas não havia ausência de preocupação. - Não sei o que houve, mas não consegui. Também não sei como evitar que o veneno se alastre.
Ambos ficaram em silêncio diante do significado daquilo. Uma lágrima solitária brotou nos olhos da mulher, mas ela secou com a parte de trás da mão antes de deixá-la escorrer. Rorik teria preferido que ela deixasse escorrer.
Passado algum tempo ela levantou e deu um sorriso sem jeito para Rorik. Assim como na vez que a Guardiã se revelou para ele na duna, Rorik queria mais do que tudo dizer para ela ficar, mas entendeu que desde a primeira vez que a viu, cruzando o céu como um raio de luz, já estavam dizendo adeus. Ela mesmo se prolongava a ir embora, como se uma parte dela não quisesse sair.
Rorik a viu iluminada pela luz da lua que vinha do buraco na lona e por um momento a odiou com todas as forças. Queria xingar ela, mandá-la embora ou simplesmente machucá-la. Ainda não estava morto, tinha forças para lutar, e faria tudo por ela. Porém, apesar de toda a sua dor, só encontrou uma coisa a dizer:
- Qual é seu nome?
Aquilo pegou a mulher de surpresa, como se fosse algo que ela tinha esquecido, então deu um sorriso de compreensão e olhou Rorik com gratidão.
- Lyanna - disse enquanto a armadura se montava em torno dela, deixando apenas o rosto à mostra. - Costumavam me chamar de Lyanna.
Então sorriu uma última vez e escondeu o rosto, desaparecendo pelo buraco na lona, o qual Rorik olhou por um longo tempo. De repente, desatou a chorar. Aquilo fez o frio no braço aumentar e não conseguia deixar de pensar no pesadelo. Nem no sono encontraria paz. De fato, teria desejado morrer ali mesmo se soubesse o que viria a seguir...

terça-feira, 7 de junho de 2011

O Guardião Pt. 2

O começo da queda de Rorik aconteceu da seguinte forma: o dragão negro se sentiu humilhado pela derrota, afinal, seu exército era muito mais numeroso e poderoso, e não seriam um simples guerreiro e uma única celestial que ficariam no seu caminho. Portanto, ele desceu às profundezas proibidas do Abismo, onde foi ter com Tecedeira, a grande aranha do submundo, e ordenou que ela despejasse toda sua malícia no jovem Rorik, emaranhando o rapaz nas teias da loucura. Ele confidenciou seu plano somente a Tecedeira e depois seguiu com suas outras maquinações, cavando com as próprias garras novas extensões do Abismo, por onde seu exército podia realizar ataques surpresa e simultâneos. Assim Rorik e a Guardiã não poderiam estar sempre no mesmo lugar, e se juntos eles demonstraram serem capazes de tudo, separados não teriam o mesmo poder, ainda mais com o veneno que agora se espalhava pela cabeça do rapaz.
E quando o grande dragão retornou ao seu trono de esqueletos e ossos ele estava satisfeito consigo mesmo, então se acomodou em seu lugar preferido, apenas esperando para dar o bote.
Mas por mais um tempo Rorik e a Guardiã colheram os frutos de sua grande vitória, se livrando com facilidade dos demônios que se desgarraram do exército. Ele era um destruidor, caçando implavelmente os inimigos depois de ter sua motivação renovada, e passara a sentir orgulho da posição de comandante, o que levou ao afastamento natural de seu grupo de mercenários. Ela, por sua vez, era a protetora, cuidando dos feridos e protegendo o grosso do exército quando o rapaz fazia suas loucas investidas. Durante esse período os dois se viam seguidamente durante as batalhas, momentos que Rorik ansiava cada vez mais, pois creditava à Guardiã todo o mérito de sua ressureição. Ainda assim, se tinha algo que o atormentava era nunca mais ter visto o rosto da celestial, e também queria descobrir seu nome, seus sonhos, tudo a seu respeito. Mal sabia ele que seus desejos logo seriam atendidos.
Era um dia quente como qualquer outro na guarnição construída em frente ao Abismo, e Rorik organizava à caça aos últimos remanescentes do exército inimigo, que se refugiavam em esconderijos no deserto, por onde usavam passagens secretas durante a noite para atacar as aldeias da região. A Guardiã fazia uma ronda áerea nessas aldeias e já não dava notícias há três dias. Em seu ímpeto, o rapaz já queria organizar buscas por ela, mas até o momento fora convencido por seus conselheiros que não havia necessidade disso, uma vez que a celestial demonstrara inúmeras vezes que sabia se virar muito bem sozinha. Mas a verdade é que não sabiam nada a seu respeito, muito menos sobre suas idas e vindas, sempre tão reservada.
Portanto ainda foi com espanto que viram o meteoro cruzar os céus e cair levantando toda aquela poeira.
Só que dessa vez havia algo diferente: a Guardiã não surgiu de imediato como de costume e Rorik sentiu um aperto no peito ao se dar conta disso. Ele chegou no local da queda antes de qualquer outro, agora correndo quando viu ela caída no chão, tentando se reerguer. Então a tomou nos braços e gritou pelos clérigos. Sua armadura estava falhando e o rapaz pôde ver a agonia em seu rosto, o que fez ele cair de joelhos e acariciar sua testa, sem ligar para olhares curiosos. Com o passar do tempo ela voltou a si, olhando Rorik com o que lhe pareceu ser ternura, mas logo que se viu rodeada de rostos mal-encarados afastou o rapaz e se pôs em pé, de volta à sua antiga glória. Ela olhou ao redor rapidamente e logo se dirigiu para a tenda de Rorik.
- Eles voltaram, Rorik - foi a primeira vez que a Guardiã falou com emoção na voz, notou Rorik, que tinha acabado de entrar na tenda. - Preciso ir.
Ele ficou sem saber o que dizer mais uma vez, mas não havia tempo para meias palavras, então o rapaz se aproximou e deu uma boa olhada nas marcas na armadura da Guardiã, não querendo nem imaginar o estado da mulher em seu interior.
- Você não pode. Está ferida.
- Você não entende - disse ela batendo o pé. - Os demônios estão por todo lado, o Abismo cresceu. Vi com os meus próprios olhos.
- E o que você viu?
- Eles surgem de uma rachadura no solo, queimando aldeias e cidades por onde passam, depois somem em outro buraco como formigas. Não há estratégia, não há um plano. É aleatório.
- Mais um motivo para não agirmos apressadamente.
A Guardiã não insistiu mais diante da lógica daquele argumento e permitiu que ele a conduzisse para uma cadeira. Eles planejaram os próximos passos com o máximo de calma que a situação permitia, mas a medida que avançavam na discussão ficou claro que não poderiam mais agir em conjunto tão seguidamente, fato que pesou no coração do rapaz. No entanto, não havia outra alternativa. Eles precisavam agir separadamente para dar conta do inimigo.
No fim, quando a breve reunião terminou e os dois já estavam outra vez sob o céu estrelado, a Guardiã se deteve por um momento, parecendo hesitar. Ela se afastou de Rorik e pousou na duna sobre a qual conversaram a primeira vez.
- Eram tantos mortos - disse ela com a cabeça baixa quando o rapaz se aproximou, e na distância era possível enxergar as chamas do incêndio na aldeia mais próxima. - Eu tentei ajudar, lutei o máximo que pude, mas...
Ela tentou continuar, mas apenas balançou a cabeça, perturbada. Rorik posou a mão em seu ombro.
- Você deu o seu melhor.
No primeiro momento ela apenas olhou a mão de Rorik pousada em seu ombro, então anuiu brevemente, se virando para ele na sequência. Eles se olharam na imensidão do deserto por um tempo que pareceu interminável para o rapaz, até que a Guardiã girou a cabeça para o lado do incêndio como se tivesse ouvido um chamado distante, desaparecendo entre nuvens de fumaça negra antes que Rorik pudesse dizer alguma coisa. E ele tinha tanto a dizer...
A guerra tomou forma outra vez, mais violenta e cruel do que nunca, e muitos homens e demônios perderam suas vidas. Nesse período a Guardiã sofreu muito, rachando cada vez mais sua armadura nos combates, agora distante de Rorik e portanto mais exposta, até mesmo a ponto de sangrar. Mais do que isso, cada soldado humano morto em batalha pesava em seus ombros, porque não havia mais ninguém para compartilhar o fardo. E Rorik era um grande comandante, traçava planos sem ligar para as baixas, além do fato de perturbarem a celestial. O que lhe causava enorme preocupação. Por mais que ele tentasse pensar em outras coisas, a Guardiã não saía de sua mente, assim como a idéia de que poderia haver algo além de uma parceria, por mais absurda que fosse a idéia de uma celestial se apaixonar por um humano. Rorik pouco sabia de teologia, mas mesmo ele conhecia a regra máxima: um celestial não pode ter relações humanas e deve retornar ao plano divino assim que completar sua missão. Ainda assim, ele sonhava. Quando deu por si, sabia que estava apaixonado, porque nunca sentira isso antes. Agora sua vida tinha um sentido, que era lutar ao lado da Guardiã, tudo para aliviar seu fardo. Dessa forma, ele poderia provar seu amor.
Então o jovem Rorik passou a traçar planos cada vez mais arrojados e espalhafatosos, levando a guerra outra vez à boca do abismo, tudo para chamar a atenção de sua amada. Ele deu pouca atenção aos avisos de seus conselheiros, preocupados que o exército sofresse muitas baixas, uma vez que não eram tão capacitados quanto Rorik e a Guardiã. Mas ele desconsiderou, dizendo que era a melhor maneira de vencer a guerra, e exonerou seu capitão do serviço quando este questionou suas motivações, perguntando se era o melhor para a guerra ou para a Guardiã. Em seu íntimo, Rorik tinha a mesma dúvida. Porém, o desejo de saber mais a respeito da celestial falou mais alto, e foi assim que ele teve o que queria, pois seu desatino foi tanto que a guerra virou para o lado dos humanos outra vez, mas ao custo de muitas baixas como fora previsto. E como a guerra sempre convergia para seus feitos, a Guardiã acabava indo ao seu encontro, primeiro observando com curiosidade a certa distância, depois se juntando às batalhas a medida que elas se tornavam mais violentas. Ela parecia não poder tirar os olhos da carnificina que Rorik propagava em seu nome, portanto dava cuidado especial aos feridos, enquanto o rapaz fazia seu trabalho.
Mas apesar de demonstrar entusiasmo com a atitude de Rorik, sua armadura se tornava cada vez mais frágil, não somente por causa dos combates, como também por sofrer demais com cada perda. Sua atitude era errática diante de tanta morte e destruição, o que fazia dela uma guerreira pior, portanto mais vulnerável. A própria atitude descuidada de Rorik desviava sua atenção da batalha e no final das contas lhe fazia mal.
E após uma batalha particularmente cruel, da qual somente os dois saíram com vida, eles se reuniram na mesma duna de sempre, cansados e feridos. Rorik ergueu-se vitorioso de uma pilha de mortos, como sempre fazia, com Fagulha-na-Noite reluzindo. Então ele olhou para trás à procura da Guardiã, buscando sua aprovação, mas viu ela cuidando dos feridos na trilha de destruição deixada por ele e não pôde deixar de sentir uma pontinha de ciúmes. Quando voltou a si, viu a Guardiã alçar um voo errático à duna, então foi atrás dela, sentindo-se impelido a lhe fazer companhia.
Ele a encontrou sentada numa pedra, olhando os corpos estendidos no campo de batalha logo abaixo, totalmente alheia à presença de Rorik; ela nem mesmo percebia que sua armadura estava falhando, indo e voltando como na vez em que quase tombara diante do dragão. Rorik ficou em silêncio por um momento, então não se aguentou e entrou em seu campo de visão, exigindo sua atenção.
- Você está ferido - disse ela subitamente, como se tivesse despertado de um sonho, e por um instante sua armadura voltou ao normal. Mas então Rorik sorriu e lhe tomou a mão.
- Você está mais - respondeu ele e lhe fez um carinho nos dedos.
Isso bastou para derrubar de vez a armadura da Guardiã, que se desmontou sozinha e caiu em pedaços na areia como uma simples armadura de placas, revelando uma mulher pequena e de olhos feridos. Os dois se olharam profundamente, adquirindo uma compreensão terrível da natureza um do outro, e foi como se tivessem trocado um primeiro olhar com o peso de milhares de encontros, tudo em menos de um piscar de olhos.
Rorik soube naquele momento que estava apaixonado para sempre.
Sem poder evitar ele começou a livrar a Guardiã das partes sobressalentes da armadura com o maior cuidado possível, pois seu frágil corpo estava repleto de arranhões e hematomas, e Rorik se perguntava como ela aguentou tanto tempo. Havia avidez e súplica em seu olhar, tal como se ela esperasse por aquele momento a vida inteira, mas simplesmente desistira que alguém cuidasse dela como ela sempre cuidou dos outros, se convencendo que ninguém jamais daria importância. Pelo menos até conhecer Rorik.
- Ai - protestou ela quando uma das placas roçou em uma ferida, e Rorik ergueu os olhos com gravidade, mas recebeu de volta um olhar cheio de ternura do qual lembraria pelo resto da vida. Ela deu um toque gentil em seu ombro e anuiu brevemente, como se dissesse que estava tudo bem, então deixou ele prosseguir até o fim. Ela o fitava com um ar maravilhado.
Eles não disseram uma palavra o tempo todo, um silêncio que dizia mais do que qualquer palavra, apenas trocaram um olhar tímido quando toda a armadura da Guardiã estava na areia, deixando a mulher vestida com nada mais do que um trapo. Todo o instinto de Rorik dizia para ele continuar, mas por algum motivo aquilo pareceu errado, e ele se contentou em aceitar um abraço. O máximo que conseguiu fazer foi lhe dar um beijo na testa antes de ela dolorosamente se afastar. No fim, Rorik tomou a mão dela outra vez e sentou na pedra para lhe fazer companhia, mais do que satisfeito.
Não passou muito tempo e a mulher cansada se aconchegou em seus braços, mas Rorik ficou acordado um pouco mais, vendo o céu se encher de estrelas. Ele nunca tinha percebido o quanto elas eram bonitas, então contou uma por uma e sentiu o coração ser tomado de calor, pois estava com os braços em volta de sua própria estrela, a qual nunca deixaria escapar.
- Estou tão cansada, Rorik - disse ela de repente. - Não sei até quando vou aguentar.
Rorik olhou fixamente para ela e por um instante sentiu ela escapando de seu abraço. Então puxou a mulher para mais perto e acompanhou seu olhar que novamente tinha se fixado no campo de batalha. Ali, naquele exato momento, ele deu por si entendendo o quão frágil era a linha que mantinha os dois juntos, porque independente do resultado da guerra a Guardiã iria embora no final, deixando Rorik sozinho para lidar com as consequências. E o que mais machucava é que ela ansiava para que isso acontecesse.
- Vai ficar tudo bem - mentiu o rapaz quando encontrou forças para responder. - Não irá demorar muito mais.
Ela olhou inquisitivamente para Rorik, mas deu por si satisfeita com sua resposta, então pousou a cabeça no ombro dele e fechou os olhos, totalmente entregue. Logo estava dormindo.
Rorik sorriu e decidiu que pensaria no que fazer quando chegasse a hora. Por enquanto, ele aproveitaria a companhia de sua estrela guia, então adormeceu sob o conforto desse pensamento. Ele acordou sozinho no outro dia e sentiu um enorme vazio, se perguntando o que tinha acontecido na noite anterior, qual o significado daquilo. Só sabia que não podia parar de sorrir.
E em algum lugar do abismo o dragão também sorria...

O Guardião Pt. 1

Era uma guerra que parecia não ter fim. Já fazia muito tempo que qualquer celestial fora visto, e nesse ponto não havia muita esperança para a raça dos homens, que minguava diante da ameaça implacável dos seres abissais.
Mas um último exército marchou das Cidades Livres e entre mais de mil homens estava o jovem Rorik Deschain, liderando alguns mercenários contratados por seu pai, um nobre comerciante. Ou pelo menos fora um até essas coisas terem algum valor. Rorik e seus homens serviam ao comandante do Grande Exército, um veterano de muitas batalhas, embora tantos já tivessem ocupado aquele cargo, e por tão pouco tempo, que alguns homens sequer se davam ao trabalho de decorar seus nomes.
Rorik era um desses homens e pouco prazer lhe dava a guerra desde a tragédia que abatera sua família e a ruína de sua Casa. Ainda assim era sua responsabilidade liderar aqueles homens de aparência cruel e miserável, tarefa que ele realizava somente por obrigação. Não no sentido de que fora mandado, uma vez que partiu dele e não de seu pai o desejo de continuar lutando mesmo sem ter mais o que defender, mas porque o próprio Rorik não podia desapontar a si mesmo, indo contra aquilo que acreditava. Porque mesmo tendo perdido tudo a honra era algo que ninguém tinha descoberto como roubar.
E Rorik Deschain cuidava dos seus.
O exército marchou durante longas semanas, adquirindo seguidores por onde passava, sulistas, nortenses e até mesmo homens selvagens das terras ermas. Até que a hoste cada vez maior atingiu seu destino quando botou os pés nas terras áridas do Deserto da Desolação, onde antes mesmo da chegada dos Primeiros Homens uma rachadura cortou o solo, tendo cerca de 5 km de comprimento e 100 metros de largura, e de lá surgiram os seres abissais. Entre eles haviam demônios, dragões e muitos outros da mesma estirpe, todos vermelhos e negros como aquela terra miserável. Pouco depois deles vieram os celestiais, seres alados de beleza quase incompreensível que surgiam das nuvens, portando poderosas espadas cheias luz e vestindo armaduras brilhantes. Branco e dourado eram suas cores, ainda que ninguém jamais soubesse seus nomes, e poucos eram os que sequer viram seus rostos. Assim teve início a Primeira Grande Guerra, época que hoje é conhecida como Os Anos de Provação.
No fim diz a lenda que houve uma trégua, os seres abissais retornaram ao Abismo e os celestiais voltaram aos céus, e foi nesse período de paz que surgiram os Primeiros Homens, fruto de ambas as espécies. Dessa forma, a raça dos homens possui em si tanto as melhores quanto as piores qualidades dos Pais, maneira pela qual os clérigos se referem a eles.
Mas agora os seres abissais haviam retornado mais numerosos do que nunca, embora bem menos poderosos que seus antepassados, às vezes tão comuns que podiam até se passar por humanos, o que não era de todo mal, pois isso permitiu que eles se aliassem a homens ambiciosos e sem senhor. E por mais que os clérigos rezassem nenhum celestial descia dos céus.
Apesar disso, o Grande Exército marchou, perdendo homens a medida que avançava. O próprio terreno era traiçoeiro, o ar que se respirava praticamente um veneno, então a doença se espalhou rapidamente. Depois veio a desconfiança, e por fim, com a aproximação da hoste inimiga, o medo. Homens sumiam noite após noite, não se sabia se fugiam ou eram mortos, mas é certo que sozinho não foram longe, independente de suas intenções.
E foi no dia mais quente em muito tempo, após semanas de caminhada, que as duas hostes finalmente ficaram cara a cara.
Sob um céu vermelho e roxo bandeiras foram recolhidas e espadas eram desembainhadas, de um lado pouco mais de 1200 homens, do outro 4 mil seres abissais, sendo que 2500 desses eram demônios puros ou mestiços, indivíduos não muito diferente de humanos, enquanto o resto da hoste era composta por humanos corrompidos e criaturas, monstros dotados de inteligência humana e aparência bestial, muitos deles alados. As próprias montarias eram monstruosas, filhotes de dragão e répteis gigantescos, seres que também tinha um intelecto superior a maioria dos animais, e que por conta própria já davam trabalho a cinco homens. Todos que podiam usavam armaduras e armas rústicas.
Então o rufar dos tambores inimigos cessou subitamente e soaram as trombetas de som cristalino dos nortenses, como era o costume daqueles confrontos, e depois vieram os gritos e xingamentos de ambos os lados, dando lugar à selvageria em questão de instantes. Assim teve início a Segunda Grande Guerra e no meio dela estava Rorik Deschain, senhor de nada e mestre de ninguém, ninguém a não ser de si mesmo.
A medida que homens e demônios caiam no campo de batalha, o grupo liderado por Rorik se destacava dos demais, pois mesmo não tendo muito em comum com um bando de mercenários, eles tratava aqueles homens temíveis com respeito e igualdade. E por causa disso os mercenários admiravam o rapaz, apreciando sua companhia e senso de dever. Muitos inclusive abdicaram de seus pagamentos. Portanto, quando o comandante do Grande Exército caiu devido a mordida do jovem dragão que levava o líder dos demônios na garupa, não foi surpresa para ninguém que Rorik assumiu a liderança do Grande Exército, sempre rodeado por seus homens de confiança.
E pouco a pouco a batalha foi se equilibrando, demônios começaram a morrer como moscas e fugir de volta ao Abismo, até que um enorme rugido veio de seu interior e chacoalhou o solo, paralisando combatentes de ambos os lados. Os estrondos eram ritmados e vinham acompanhados de uma fuligem negra vomitada pelo Abismo, e todos se afastaram da fumaça tóxica, principalmente os demônios, que corriam apavorados de um lado para o outro. Passados alguns minutos ficou tudo em silêncio e os homens aguardavam sob a liderança firme de Rorik. Porém, quando os mais entusiasmados já comemoravam a vitória, formas enormes começaram a surgir da fuligem negra, demônios e criaturas que antes só existiam em lendas, todos envoltos por aquela estranha fumaça. Até que a própria fumaça pareceu tomar forma, e quando os homens se deram por conta, ela assumiu a forma de um enorme dragão negro, cujas narinas exalavam fuligem cor de breu.
Tudo que foi necessário para o pavor tomar conta foi um rugido.
Os únicos que mantiveram formação foram Rorik e seus homens, acompanhados por um punhado de homens corajosos, que no total não somavam mais de 300 cabeças. Quanto aos demônios, a maioria da primeira leva foi morta pelos próprios superiores, sobrando apenas os mais fortes, agora liderados pelo dragão. E foi nesse momento, quando toda a esperança parecia perdida e o grande dragão preparava o bote sobre Rorik Deschain, que um raio de luz branco e ouro na forma de um meteoro cruzou os céus. Aquilo pegou humanos e demônios de surpresa, interrompendo a luta por um momento, pois todos os olhos estavam voltados para o céu.
Então o meteoro deu uma curva e desceu ao solo em grande velocidade, caindo no meio da hoste inimiga com uma enorme explosão e arremessando demônios a grandes distâncias, e o que se seguiu foi assombro de ambos os lados. Quando a poeira baixou, todos se aproximaram respeitosamente com a excessão de Rorik, que tinha olhos fixos no dragão. E pouco a pouco uma forma foi assomando no centro de uma pequena cratera causada pela explosão, um ser alado e todo brilhante caído elegantemente sobre um joelho, segurando uma enorme espada de luz dourada em cada mão. Aí até mesmo Rorik foi obrigado a tirar os olhos da luta.
Ele se aproximou mais do que qualquer um, fascinado por aquele ser de armadura tão brilhante, certamente um celestial das velhas lendas. Do lado do inimigo, o único que teve coragem de fazer o mesmo foi o grande dragão, e logo o celestial se pôs em pé, voltado para Rorik. Então o paladino se virou para o dragão e ergueu as espadas, ficando entre Rorik e o dragão. Nesse ponto todos estavam estupefatos demais para reagir, e quando o celestial alçou voo sobre o dragão negro, fazendo o grande lagarto rugir de dor, ninguém ousou interferir.
Mas então o monstro acertou o paladino com um poderoso golpe de sua cauda, fazendo ele rodopiar no ar e cair atrás de uma duna distante, bem longe do campo de batalha. E agora foi a vez do dragão alçar voo para devorar sua presa.
Aquilo foi o suficiente para despertar Rorik de seu estupor.
Uma grande explosão de faíscas brancas e negras rasgou o céu e por um momento Rorik temeu ter voltado a si tarde demais. Ele correu na direção da duna e no caminho pegou uma das espadas de luz que o celestial derrubou quando foi atingido. As explosões se repetiram algumas vezes, sempre acompanhadas por um estrondo ensurdecedor, como se uma batalha de proporções épicas se desenrolasse do lado de lá da duna. Uma batalha na qual a cor negra estava prevalecendo.
Ainda assim restava um pouco de branco quando Rorik atingiu o topo da duna. O celestial era uma pequena forma brilhante diante da enorme envergadura do dragão negro, mas ainda resistia com sua única espada e um escudo de energia que se projetava do antebraço, embora não tivesse mais forças para ficar em pé. Percebendo a fragilidade do adversário, o dragão ficou sobre as patas traseiras e inflou o peito com sua chama negra, alheio à presença de Rorik, que aproveitou a distração do monstro para rolar duna abaixo. E no último instante, quando o dragão caiu outra vez sobre as quatro patas, estremecendo todo o chão com seu peso maciço, Rorik correu como nunca e rolou no chão, onde defendeu com o escudo a cusparada de fogo negro que fora intencionada ao celestial. Agora foi a vez de Rorik ficar entre o dragão e sua presa, gritando devido ao calor que queimava sua pele, pouco protegida por uma simples placa de escamas.
Então ele sentiu um toque suave no ombro e viu sua armadura brilhar cada vez mais a medida que o dragão aumentava a intensidade do fogo. Mas ainda assim aquilo não era o suficiente para Rorik sobreviver por muito mais tempo, portanto ele respirou aliviado quando viu seu exército descendo a duna, assediando o dragão da maneira que podia. A criatura rugiu de dor quando lhe cravaram uma lança no flanco e se virou para abocanhar quem quer que estivesse em seu caminho, abandonando as duas presas que estavam dando tanto trabalho em troca de uma refeição mais simples, e Rorik aproveitou a distração do dragão para se reeguer e fazer o mesmo pelo celestial, oferecendo sua mão como apoio. A armadura brilhante de Rorik fora cedida pelo próprio celestial, e agora ela havia retornado a seu dono por direito, mas não sem antes o rapaz ter um rápido vislumbre da mulher debaixo da malha branca. Rorik sorru e disse:
- Então não devo minha vida a um guardião, mas sim a uma guardiã, não é?
A Guardiã de Rorik nada disse no primeiro momento. Foi apenas quando o elmo se fechou totalmente que ela respondeu.
- Obrigada - disse com uma voz feminina alterada. Então alçou voo outra vez para o campo de batalha, pois os inimigos haviam voltado a si e o dragão causava grande estrago, arranhando e mordendo tal qual um crocodilo.
E foi sob a liderança de Rorik e a Guardiã que a batalha foi vencida pelos homens, sendo que mais de duzentos demônios caíram diante de suas espadas de luz, e até mesmo o dragão rastejou de volta ao Abismo com alguns arranhões. No fim daquela noite, após as comemorações, Rorik foi ter com a Guardiã no topo da duna, onde ela observava os festejos rudes dos homens protegida por sua armadura brilhante. A princípio ele não falou nada, apenas acompanhou seu olhar e lhe fez companhia, sem saber o que dizer.
- Foi uma boa luta - disse por mim e ofereceu a ela um chifre de cerveja.
Ela olhou o chifre brevemente e então ergueu a cabeça para o céu estrelado, aprumando as asas, que eram quase transparentes de tão finas. Mas Rorik se adiantou e agarrou seu braço.
- Espere - disse ele, mas se afastou diante do movimento abrupto da cabeça da Guardiã, lembrando uma ave de rapina com seu elmo fechado. - Preciso lhe devolver uma coisa.
Então desembainhou a espada de luz e ficou caído sobre um joelho, solene. A Guardiã ficou sem reação diante daquilo, mas de repente fez um ruído delicado que lembrou uma risada e põs a mão no queixo de Rorik, erguendo gentilmente sua cabeça.
- De pé, cavaleiro - disse ela e Rorik obedeceu com prontidão. - Você não me deve nada. Na verdade, se algum de nós deve algo a alguém aqui, essa alguém sou eu.
E apesar de não estar acostumado a ficar sem palavras, Rorik Deschain ficou sem saber o que dizer. Apenas disse debilmente:
- E a espada?
- É sua. Você fez por merecer.
Ele batizaria a espada de Fagulha-na-Noite.
Depois disso a Guardiã finalmente alçou voo e Rorik viu ela desaparecer entre as estrelas. Ele passou alguns minutos admirando o céu noturno, e quando enfim desceu a duna, tinha os passos pesados. Rorik olhou para o céu mais uma vez antes de entrar em sua tenda, se perguntando se um dia veria a Guardiã novamente. Então não suportou mais a exaustão e foi se deitar.
Mas a Guardiã não teria descanso tão cedo, pois a vingança do dragão seria terrível, e ela não demoraria a vir...