terça-feira, 7 de junho de 2011

O Guardião Pt. 2

O começo da queda de Rorik aconteceu da seguinte forma: o dragão negro se sentiu humilhado pela derrota, afinal, seu exército era muito mais numeroso e poderoso, e não seriam um simples guerreiro e uma única celestial que ficariam no seu caminho. Portanto, ele desceu às profundezas proibidas do Abismo, onde foi ter com Tecedeira, a grande aranha do submundo, e ordenou que ela despejasse toda sua malícia no jovem Rorik, emaranhando o rapaz nas teias da loucura. Ele confidenciou seu plano somente a Tecedeira e depois seguiu com suas outras maquinações, cavando com as próprias garras novas extensões do Abismo, por onde seu exército podia realizar ataques surpresa e simultâneos. Assim Rorik e a Guardiã não poderiam estar sempre no mesmo lugar, e se juntos eles demonstraram serem capazes de tudo, separados não teriam o mesmo poder, ainda mais com o veneno que agora se espalhava pela cabeça do rapaz.
E quando o grande dragão retornou ao seu trono de esqueletos e ossos ele estava satisfeito consigo mesmo, então se acomodou em seu lugar preferido, apenas esperando para dar o bote.
Mas por mais um tempo Rorik e a Guardiã colheram os frutos de sua grande vitória, se livrando com facilidade dos demônios que se desgarraram do exército. Ele era um destruidor, caçando implavelmente os inimigos depois de ter sua motivação renovada, e passara a sentir orgulho da posição de comandante, o que levou ao afastamento natural de seu grupo de mercenários. Ela, por sua vez, era a protetora, cuidando dos feridos e protegendo o grosso do exército quando o rapaz fazia suas loucas investidas. Durante esse período os dois se viam seguidamente durante as batalhas, momentos que Rorik ansiava cada vez mais, pois creditava à Guardiã todo o mérito de sua ressureição. Ainda assim, se tinha algo que o atormentava era nunca mais ter visto o rosto da celestial, e também queria descobrir seu nome, seus sonhos, tudo a seu respeito. Mal sabia ele que seus desejos logo seriam atendidos.
Era um dia quente como qualquer outro na guarnição construída em frente ao Abismo, e Rorik organizava à caça aos últimos remanescentes do exército inimigo, que se refugiavam em esconderijos no deserto, por onde usavam passagens secretas durante a noite para atacar as aldeias da região. A Guardiã fazia uma ronda áerea nessas aldeias e já não dava notícias há três dias. Em seu ímpeto, o rapaz já queria organizar buscas por ela, mas até o momento fora convencido por seus conselheiros que não havia necessidade disso, uma vez que a celestial demonstrara inúmeras vezes que sabia se virar muito bem sozinha. Mas a verdade é que não sabiam nada a seu respeito, muito menos sobre suas idas e vindas, sempre tão reservada.
Portanto ainda foi com espanto que viram o meteoro cruzar os céus e cair levantando toda aquela poeira.
Só que dessa vez havia algo diferente: a Guardiã não surgiu de imediato como de costume e Rorik sentiu um aperto no peito ao se dar conta disso. Ele chegou no local da queda antes de qualquer outro, agora correndo quando viu ela caída no chão, tentando se reerguer. Então a tomou nos braços e gritou pelos clérigos. Sua armadura estava falhando e o rapaz pôde ver a agonia em seu rosto, o que fez ele cair de joelhos e acariciar sua testa, sem ligar para olhares curiosos. Com o passar do tempo ela voltou a si, olhando Rorik com o que lhe pareceu ser ternura, mas logo que se viu rodeada de rostos mal-encarados afastou o rapaz e se pôs em pé, de volta à sua antiga glória. Ela olhou ao redor rapidamente e logo se dirigiu para a tenda de Rorik.
- Eles voltaram, Rorik - foi a primeira vez que a Guardiã falou com emoção na voz, notou Rorik, que tinha acabado de entrar na tenda. - Preciso ir.
Ele ficou sem saber o que dizer mais uma vez, mas não havia tempo para meias palavras, então o rapaz se aproximou e deu uma boa olhada nas marcas na armadura da Guardiã, não querendo nem imaginar o estado da mulher em seu interior.
- Você não pode. Está ferida.
- Você não entende - disse ela batendo o pé. - Os demônios estão por todo lado, o Abismo cresceu. Vi com os meus próprios olhos.
- E o que você viu?
- Eles surgem de uma rachadura no solo, queimando aldeias e cidades por onde passam, depois somem em outro buraco como formigas. Não há estratégia, não há um plano. É aleatório.
- Mais um motivo para não agirmos apressadamente.
A Guardiã não insistiu mais diante da lógica daquele argumento e permitiu que ele a conduzisse para uma cadeira. Eles planejaram os próximos passos com o máximo de calma que a situação permitia, mas a medida que avançavam na discussão ficou claro que não poderiam mais agir em conjunto tão seguidamente, fato que pesou no coração do rapaz. No entanto, não havia outra alternativa. Eles precisavam agir separadamente para dar conta do inimigo.
No fim, quando a breve reunião terminou e os dois já estavam outra vez sob o céu estrelado, a Guardiã se deteve por um momento, parecendo hesitar. Ela se afastou de Rorik e pousou na duna sobre a qual conversaram a primeira vez.
- Eram tantos mortos - disse ela com a cabeça baixa quando o rapaz se aproximou, e na distância era possível enxergar as chamas do incêndio na aldeia mais próxima. - Eu tentei ajudar, lutei o máximo que pude, mas...
Ela tentou continuar, mas apenas balançou a cabeça, perturbada. Rorik posou a mão em seu ombro.
- Você deu o seu melhor.
No primeiro momento ela apenas olhou a mão de Rorik pousada em seu ombro, então anuiu brevemente, se virando para ele na sequência. Eles se olharam na imensidão do deserto por um tempo que pareceu interminável para o rapaz, até que a Guardiã girou a cabeça para o lado do incêndio como se tivesse ouvido um chamado distante, desaparecendo entre nuvens de fumaça negra antes que Rorik pudesse dizer alguma coisa. E ele tinha tanto a dizer...
A guerra tomou forma outra vez, mais violenta e cruel do que nunca, e muitos homens e demônios perderam suas vidas. Nesse período a Guardiã sofreu muito, rachando cada vez mais sua armadura nos combates, agora distante de Rorik e portanto mais exposta, até mesmo a ponto de sangrar. Mais do que isso, cada soldado humano morto em batalha pesava em seus ombros, porque não havia mais ninguém para compartilhar o fardo. E Rorik era um grande comandante, traçava planos sem ligar para as baixas, além do fato de perturbarem a celestial. O que lhe causava enorme preocupação. Por mais que ele tentasse pensar em outras coisas, a Guardiã não saía de sua mente, assim como a idéia de que poderia haver algo além de uma parceria, por mais absurda que fosse a idéia de uma celestial se apaixonar por um humano. Rorik pouco sabia de teologia, mas mesmo ele conhecia a regra máxima: um celestial não pode ter relações humanas e deve retornar ao plano divino assim que completar sua missão. Ainda assim, ele sonhava. Quando deu por si, sabia que estava apaixonado, porque nunca sentira isso antes. Agora sua vida tinha um sentido, que era lutar ao lado da Guardiã, tudo para aliviar seu fardo. Dessa forma, ele poderia provar seu amor.
Então o jovem Rorik passou a traçar planos cada vez mais arrojados e espalhafatosos, levando a guerra outra vez à boca do abismo, tudo para chamar a atenção de sua amada. Ele deu pouca atenção aos avisos de seus conselheiros, preocupados que o exército sofresse muitas baixas, uma vez que não eram tão capacitados quanto Rorik e a Guardiã. Mas ele desconsiderou, dizendo que era a melhor maneira de vencer a guerra, e exonerou seu capitão do serviço quando este questionou suas motivações, perguntando se era o melhor para a guerra ou para a Guardiã. Em seu íntimo, Rorik tinha a mesma dúvida. Porém, o desejo de saber mais a respeito da celestial falou mais alto, e foi assim que ele teve o que queria, pois seu desatino foi tanto que a guerra virou para o lado dos humanos outra vez, mas ao custo de muitas baixas como fora previsto. E como a guerra sempre convergia para seus feitos, a Guardiã acabava indo ao seu encontro, primeiro observando com curiosidade a certa distância, depois se juntando às batalhas a medida que elas se tornavam mais violentas. Ela parecia não poder tirar os olhos da carnificina que Rorik propagava em seu nome, portanto dava cuidado especial aos feridos, enquanto o rapaz fazia seu trabalho.
Mas apesar de demonstrar entusiasmo com a atitude de Rorik, sua armadura se tornava cada vez mais frágil, não somente por causa dos combates, como também por sofrer demais com cada perda. Sua atitude era errática diante de tanta morte e destruição, o que fazia dela uma guerreira pior, portanto mais vulnerável. A própria atitude descuidada de Rorik desviava sua atenção da batalha e no final das contas lhe fazia mal.
E após uma batalha particularmente cruel, da qual somente os dois saíram com vida, eles se reuniram na mesma duna de sempre, cansados e feridos. Rorik ergueu-se vitorioso de uma pilha de mortos, como sempre fazia, com Fagulha-na-Noite reluzindo. Então ele olhou para trás à procura da Guardiã, buscando sua aprovação, mas viu ela cuidando dos feridos na trilha de destruição deixada por ele e não pôde deixar de sentir uma pontinha de ciúmes. Quando voltou a si, viu a Guardiã alçar um voo errático à duna, então foi atrás dela, sentindo-se impelido a lhe fazer companhia.
Ele a encontrou sentada numa pedra, olhando os corpos estendidos no campo de batalha logo abaixo, totalmente alheia à presença de Rorik; ela nem mesmo percebia que sua armadura estava falhando, indo e voltando como na vez em que quase tombara diante do dragão. Rorik ficou em silêncio por um momento, então não se aguentou e entrou em seu campo de visão, exigindo sua atenção.
- Você está ferido - disse ela subitamente, como se tivesse despertado de um sonho, e por um instante sua armadura voltou ao normal. Mas então Rorik sorriu e lhe tomou a mão.
- Você está mais - respondeu ele e lhe fez um carinho nos dedos.
Isso bastou para derrubar de vez a armadura da Guardiã, que se desmontou sozinha e caiu em pedaços na areia como uma simples armadura de placas, revelando uma mulher pequena e de olhos feridos. Os dois se olharam profundamente, adquirindo uma compreensão terrível da natureza um do outro, e foi como se tivessem trocado um primeiro olhar com o peso de milhares de encontros, tudo em menos de um piscar de olhos.
Rorik soube naquele momento que estava apaixonado para sempre.
Sem poder evitar ele começou a livrar a Guardiã das partes sobressalentes da armadura com o maior cuidado possível, pois seu frágil corpo estava repleto de arranhões e hematomas, e Rorik se perguntava como ela aguentou tanto tempo. Havia avidez e súplica em seu olhar, tal como se ela esperasse por aquele momento a vida inteira, mas simplesmente desistira que alguém cuidasse dela como ela sempre cuidou dos outros, se convencendo que ninguém jamais daria importância. Pelo menos até conhecer Rorik.
- Ai - protestou ela quando uma das placas roçou em uma ferida, e Rorik ergueu os olhos com gravidade, mas recebeu de volta um olhar cheio de ternura do qual lembraria pelo resto da vida. Ela deu um toque gentil em seu ombro e anuiu brevemente, como se dissesse que estava tudo bem, então deixou ele prosseguir até o fim. Ela o fitava com um ar maravilhado.
Eles não disseram uma palavra o tempo todo, um silêncio que dizia mais do que qualquer palavra, apenas trocaram um olhar tímido quando toda a armadura da Guardiã estava na areia, deixando a mulher vestida com nada mais do que um trapo. Todo o instinto de Rorik dizia para ele continuar, mas por algum motivo aquilo pareceu errado, e ele se contentou em aceitar um abraço. O máximo que conseguiu fazer foi lhe dar um beijo na testa antes de ela dolorosamente se afastar. No fim, Rorik tomou a mão dela outra vez e sentou na pedra para lhe fazer companhia, mais do que satisfeito.
Não passou muito tempo e a mulher cansada se aconchegou em seus braços, mas Rorik ficou acordado um pouco mais, vendo o céu se encher de estrelas. Ele nunca tinha percebido o quanto elas eram bonitas, então contou uma por uma e sentiu o coração ser tomado de calor, pois estava com os braços em volta de sua própria estrela, a qual nunca deixaria escapar.
- Estou tão cansada, Rorik - disse ela de repente. - Não sei até quando vou aguentar.
Rorik olhou fixamente para ela e por um instante sentiu ela escapando de seu abraço. Então puxou a mulher para mais perto e acompanhou seu olhar que novamente tinha se fixado no campo de batalha. Ali, naquele exato momento, ele deu por si entendendo o quão frágil era a linha que mantinha os dois juntos, porque independente do resultado da guerra a Guardiã iria embora no final, deixando Rorik sozinho para lidar com as consequências. E o que mais machucava é que ela ansiava para que isso acontecesse.
- Vai ficar tudo bem - mentiu o rapaz quando encontrou forças para responder. - Não irá demorar muito mais.
Ela olhou inquisitivamente para Rorik, mas deu por si satisfeita com sua resposta, então pousou a cabeça no ombro dele e fechou os olhos, totalmente entregue. Logo estava dormindo.
Rorik sorriu e decidiu que pensaria no que fazer quando chegasse a hora. Por enquanto, ele aproveitaria a companhia de sua estrela guia, então adormeceu sob o conforto desse pensamento. Ele acordou sozinho no outro dia e sentiu um enorme vazio, se perguntando o que tinha acontecido na noite anterior, qual o significado daquilo. Só sabia que não podia parar de sorrir.
E em algum lugar do abismo o dragão também sorria...

O Guardião Pt. 1

Era uma guerra que parecia não ter fim. Já fazia muito tempo que qualquer celestial fora visto, e nesse ponto não havia muita esperança para a raça dos homens, que minguava diante da ameaça implacável dos seres abissais.
Mas um último exército marchou das Cidades Livres e entre mais de mil homens estava o jovem Rorik Deschain, liderando alguns mercenários contratados por seu pai, um nobre comerciante. Ou pelo menos fora um até essas coisas terem algum valor. Rorik e seus homens serviam ao comandante do Grande Exército, um veterano de muitas batalhas, embora tantos já tivessem ocupado aquele cargo, e por tão pouco tempo, que alguns homens sequer se davam ao trabalho de decorar seus nomes.
Rorik era um desses homens e pouco prazer lhe dava a guerra desde a tragédia que abatera sua família e a ruína de sua Casa. Ainda assim era sua responsabilidade liderar aqueles homens de aparência cruel e miserável, tarefa que ele realizava somente por obrigação. Não no sentido de que fora mandado, uma vez que partiu dele e não de seu pai o desejo de continuar lutando mesmo sem ter mais o que defender, mas porque o próprio Rorik não podia desapontar a si mesmo, indo contra aquilo que acreditava. Porque mesmo tendo perdido tudo a honra era algo que ninguém tinha descoberto como roubar.
E Rorik Deschain cuidava dos seus.
O exército marchou durante longas semanas, adquirindo seguidores por onde passava, sulistas, nortenses e até mesmo homens selvagens das terras ermas. Até que a hoste cada vez maior atingiu seu destino quando botou os pés nas terras áridas do Deserto da Desolação, onde antes mesmo da chegada dos Primeiros Homens uma rachadura cortou o solo, tendo cerca de 5 km de comprimento e 100 metros de largura, e de lá surgiram os seres abissais. Entre eles haviam demônios, dragões e muitos outros da mesma estirpe, todos vermelhos e negros como aquela terra miserável. Pouco depois deles vieram os celestiais, seres alados de beleza quase incompreensível que surgiam das nuvens, portando poderosas espadas cheias luz e vestindo armaduras brilhantes. Branco e dourado eram suas cores, ainda que ninguém jamais soubesse seus nomes, e poucos eram os que sequer viram seus rostos. Assim teve início a Primeira Grande Guerra, época que hoje é conhecida como Os Anos de Provação.
No fim diz a lenda que houve uma trégua, os seres abissais retornaram ao Abismo e os celestiais voltaram aos céus, e foi nesse período de paz que surgiram os Primeiros Homens, fruto de ambas as espécies. Dessa forma, a raça dos homens possui em si tanto as melhores quanto as piores qualidades dos Pais, maneira pela qual os clérigos se referem a eles.
Mas agora os seres abissais haviam retornado mais numerosos do que nunca, embora bem menos poderosos que seus antepassados, às vezes tão comuns que podiam até se passar por humanos, o que não era de todo mal, pois isso permitiu que eles se aliassem a homens ambiciosos e sem senhor. E por mais que os clérigos rezassem nenhum celestial descia dos céus.
Apesar disso, o Grande Exército marchou, perdendo homens a medida que avançava. O próprio terreno era traiçoeiro, o ar que se respirava praticamente um veneno, então a doença se espalhou rapidamente. Depois veio a desconfiança, e por fim, com a aproximação da hoste inimiga, o medo. Homens sumiam noite após noite, não se sabia se fugiam ou eram mortos, mas é certo que sozinho não foram longe, independente de suas intenções.
E foi no dia mais quente em muito tempo, após semanas de caminhada, que as duas hostes finalmente ficaram cara a cara.
Sob um céu vermelho e roxo bandeiras foram recolhidas e espadas eram desembainhadas, de um lado pouco mais de 1200 homens, do outro 4 mil seres abissais, sendo que 2500 desses eram demônios puros ou mestiços, indivíduos não muito diferente de humanos, enquanto o resto da hoste era composta por humanos corrompidos e criaturas, monstros dotados de inteligência humana e aparência bestial, muitos deles alados. As próprias montarias eram monstruosas, filhotes de dragão e répteis gigantescos, seres que também tinha um intelecto superior a maioria dos animais, e que por conta própria já davam trabalho a cinco homens. Todos que podiam usavam armaduras e armas rústicas.
Então o rufar dos tambores inimigos cessou subitamente e soaram as trombetas de som cristalino dos nortenses, como era o costume daqueles confrontos, e depois vieram os gritos e xingamentos de ambos os lados, dando lugar à selvageria em questão de instantes. Assim teve início a Segunda Grande Guerra e no meio dela estava Rorik Deschain, senhor de nada e mestre de ninguém, ninguém a não ser de si mesmo.
A medida que homens e demônios caiam no campo de batalha, o grupo liderado por Rorik se destacava dos demais, pois mesmo não tendo muito em comum com um bando de mercenários, eles tratava aqueles homens temíveis com respeito e igualdade. E por causa disso os mercenários admiravam o rapaz, apreciando sua companhia e senso de dever. Muitos inclusive abdicaram de seus pagamentos. Portanto, quando o comandante do Grande Exército caiu devido a mordida do jovem dragão que levava o líder dos demônios na garupa, não foi surpresa para ninguém que Rorik assumiu a liderança do Grande Exército, sempre rodeado por seus homens de confiança.
E pouco a pouco a batalha foi se equilibrando, demônios começaram a morrer como moscas e fugir de volta ao Abismo, até que um enorme rugido veio de seu interior e chacoalhou o solo, paralisando combatentes de ambos os lados. Os estrondos eram ritmados e vinham acompanhados de uma fuligem negra vomitada pelo Abismo, e todos se afastaram da fumaça tóxica, principalmente os demônios, que corriam apavorados de um lado para o outro. Passados alguns minutos ficou tudo em silêncio e os homens aguardavam sob a liderança firme de Rorik. Porém, quando os mais entusiasmados já comemoravam a vitória, formas enormes começaram a surgir da fuligem negra, demônios e criaturas que antes só existiam em lendas, todos envoltos por aquela estranha fumaça. Até que a própria fumaça pareceu tomar forma, e quando os homens se deram por conta, ela assumiu a forma de um enorme dragão negro, cujas narinas exalavam fuligem cor de breu.
Tudo que foi necessário para o pavor tomar conta foi um rugido.
Os únicos que mantiveram formação foram Rorik e seus homens, acompanhados por um punhado de homens corajosos, que no total não somavam mais de 300 cabeças. Quanto aos demônios, a maioria da primeira leva foi morta pelos próprios superiores, sobrando apenas os mais fortes, agora liderados pelo dragão. E foi nesse momento, quando toda a esperança parecia perdida e o grande dragão preparava o bote sobre Rorik Deschain, que um raio de luz branco e ouro na forma de um meteoro cruzou os céus. Aquilo pegou humanos e demônios de surpresa, interrompendo a luta por um momento, pois todos os olhos estavam voltados para o céu.
Então o meteoro deu uma curva e desceu ao solo em grande velocidade, caindo no meio da hoste inimiga com uma enorme explosão e arremessando demônios a grandes distâncias, e o que se seguiu foi assombro de ambos os lados. Quando a poeira baixou, todos se aproximaram respeitosamente com a excessão de Rorik, que tinha olhos fixos no dragão. E pouco a pouco uma forma foi assomando no centro de uma pequena cratera causada pela explosão, um ser alado e todo brilhante caído elegantemente sobre um joelho, segurando uma enorme espada de luz dourada em cada mão. Aí até mesmo Rorik foi obrigado a tirar os olhos da luta.
Ele se aproximou mais do que qualquer um, fascinado por aquele ser de armadura tão brilhante, certamente um celestial das velhas lendas. Do lado do inimigo, o único que teve coragem de fazer o mesmo foi o grande dragão, e logo o celestial se pôs em pé, voltado para Rorik. Então o paladino se virou para o dragão e ergueu as espadas, ficando entre Rorik e o dragão. Nesse ponto todos estavam estupefatos demais para reagir, e quando o celestial alçou voo sobre o dragão negro, fazendo o grande lagarto rugir de dor, ninguém ousou interferir.
Mas então o monstro acertou o paladino com um poderoso golpe de sua cauda, fazendo ele rodopiar no ar e cair atrás de uma duna distante, bem longe do campo de batalha. E agora foi a vez do dragão alçar voo para devorar sua presa.
Aquilo foi o suficiente para despertar Rorik de seu estupor.
Uma grande explosão de faíscas brancas e negras rasgou o céu e por um momento Rorik temeu ter voltado a si tarde demais. Ele correu na direção da duna e no caminho pegou uma das espadas de luz que o celestial derrubou quando foi atingido. As explosões se repetiram algumas vezes, sempre acompanhadas por um estrondo ensurdecedor, como se uma batalha de proporções épicas se desenrolasse do lado de lá da duna. Uma batalha na qual a cor negra estava prevalecendo.
Ainda assim restava um pouco de branco quando Rorik atingiu o topo da duna. O celestial era uma pequena forma brilhante diante da enorme envergadura do dragão negro, mas ainda resistia com sua única espada e um escudo de energia que se projetava do antebraço, embora não tivesse mais forças para ficar em pé. Percebendo a fragilidade do adversário, o dragão ficou sobre as patas traseiras e inflou o peito com sua chama negra, alheio à presença de Rorik, que aproveitou a distração do monstro para rolar duna abaixo. E no último instante, quando o dragão caiu outra vez sobre as quatro patas, estremecendo todo o chão com seu peso maciço, Rorik correu como nunca e rolou no chão, onde defendeu com o escudo a cusparada de fogo negro que fora intencionada ao celestial. Agora foi a vez de Rorik ficar entre o dragão e sua presa, gritando devido ao calor que queimava sua pele, pouco protegida por uma simples placa de escamas.
Então ele sentiu um toque suave no ombro e viu sua armadura brilhar cada vez mais a medida que o dragão aumentava a intensidade do fogo. Mas ainda assim aquilo não era o suficiente para Rorik sobreviver por muito mais tempo, portanto ele respirou aliviado quando viu seu exército descendo a duna, assediando o dragão da maneira que podia. A criatura rugiu de dor quando lhe cravaram uma lança no flanco e se virou para abocanhar quem quer que estivesse em seu caminho, abandonando as duas presas que estavam dando tanto trabalho em troca de uma refeição mais simples, e Rorik aproveitou a distração do dragão para se reeguer e fazer o mesmo pelo celestial, oferecendo sua mão como apoio. A armadura brilhante de Rorik fora cedida pelo próprio celestial, e agora ela havia retornado a seu dono por direito, mas não sem antes o rapaz ter um rápido vislumbre da mulher debaixo da malha branca. Rorik sorru e disse:
- Então não devo minha vida a um guardião, mas sim a uma guardiã, não é?
A Guardiã de Rorik nada disse no primeiro momento. Foi apenas quando o elmo se fechou totalmente que ela respondeu.
- Obrigada - disse com uma voz feminina alterada. Então alçou voo outra vez para o campo de batalha, pois os inimigos haviam voltado a si e o dragão causava grande estrago, arranhando e mordendo tal qual um crocodilo.
E foi sob a liderança de Rorik e a Guardiã que a batalha foi vencida pelos homens, sendo que mais de duzentos demônios caíram diante de suas espadas de luz, e até mesmo o dragão rastejou de volta ao Abismo com alguns arranhões. No fim daquela noite, após as comemorações, Rorik foi ter com a Guardiã no topo da duna, onde ela observava os festejos rudes dos homens protegida por sua armadura brilhante. A princípio ele não falou nada, apenas acompanhou seu olhar e lhe fez companhia, sem saber o que dizer.
- Foi uma boa luta - disse por mim e ofereceu a ela um chifre de cerveja.
Ela olhou o chifre brevemente e então ergueu a cabeça para o céu estrelado, aprumando as asas, que eram quase transparentes de tão finas. Mas Rorik se adiantou e agarrou seu braço.
- Espere - disse ele, mas se afastou diante do movimento abrupto da cabeça da Guardiã, lembrando uma ave de rapina com seu elmo fechado. - Preciso lhe devolver uma coisa.
Então desembainhou a espada de luz e ficou caído sobre um joelho, solene. A Guardiã ficou sem reação diante daquilo, mas de repente fez um ruído delicado que lembrou uma risada e põs a mão no queixo de Rorik, erguendo gentilmente sua cabeça.
- De pé, cavaleiro - disse ela e Rorik obedeceu com prontidão. - Você não me deve nada. Na verdade, se algum de nós deve algo a alguém aqui, essa alguém sou eu.
E apesar de não estar acostumado a ficar sem palavras, Rorik Deschain ficou sem saber o que dizer. Apenas disse debilmente:
- E a espada?
- É sua. Você fez por merecer.
Ele batizaria a espada de Fagulha-na-Noite.
Depois disso a Guardiã finalmente alçou voo e Rorik viu ela desaparecer entre as estrelas. Ele passou alguns minutos admirando o céu noturno, e quando enfim desceu a duna, tinha os passos pesados. Rorik olhou para o céu mais uma vez antes de entrar em sua tenda, se perguntando se um dia veria a Guardiã novamente. Então não suportou mais a exaustão e foi se deitar.
Mas a Guardiã não teria descanso tão cedo, pois a vingança do dragão seria terrível, e ela não demoraria a vir...