domingo, 24 de julho de 2011

O Guardião Pt. 4

O dragão finalmente estava satisfeito. Agora era só questão de deixar o impetuoso Rorik fazer sua parte, afinal, ele não passava de um soldado, portanto nunca fora páreo para um dragão. O grande dragão ruminava sobre isso quando Issh'tal entrou furioso em seu covil, bradando que Lâmina da Perdição de nada adiantara, e exigindo uma arma melhor. O dragão ouviu as queixas de seu capitão até o dêmonio cansar.
- Posso falar agora? - disse com toda sua pompa, ainda que sua voz monstruosa reverberasse por toda a caverna.
Aquilo bastou para o demônio ficar de joelhos.
- Obrigado.
Então o dragão se aproximou lentamente, ficando com o enorme focinho assustadoramente perto de Issh'tal, e só a aproximação já começou a queimar a pele do demônio. Mas ele não ousaria se mover.
- Meu caro Issh'tal - deu um bocejo antes de continuar, o que fez o demônio arder em chamas. - E quem disse que você era digno de Lâmina da Perdição?
Por fim, uma simples baforada do nariz reduzira o capitão a cinzas, e a foice caiu intacta sobre seus restos mortais, se cravando no chão. O dragão sorria.
- Essa arma pertence a um Guardião.
Agora o dragão esperaria sem pressa por seu novo campeão. Afinal, era apenas questão de tempo...
Rorik acordou com a visão da foice cravada no chão sobre uma pilha de cinzas e sentiu um calafrio lhe percorrer todo o corpo. Porém, o frio permaneceria em seu braço ferido, sem sinal de ir embora. O rapaz se sentia fraco e desejava que tudo não passasse de um pesadelo. Então lembrou das videntes. Sim, elas poderiam ajudá-lo, quem sabe até tratar de seu ferimento. No final das contas, ainda havia esperança para ele e a Guardiã, e aquele pensamento lhe deu forças para sair da cama. "O frio é algo passageiro", dizia a si mesmo, "não vou deixar isso me deter".
Mas o frio que sentia no ferimento não era nada perto da frieza que encontrara fora de sua tenda. Os homens o olhavam de maneira estranha, sem o medo e desconfiança de antes, o que poderia ser positivo se Rorik não visse algo pior em seus olhos: pena. O mesmo olhar que tantas vezes vira ser direcionado a soldados moribundos. Alguns até mesmo assentiam com a cabeça quando ele passava, como se quisessem encorajá-lo, enquanto outros pareciam envergonhados. Logo descobriu que fora a Guardiã que dissera aos homens de sua condição, pedindo que tomassem conta dele e deixassem apenas o imprescindível sob sua jurisdição, porque ela não poderia estar sempre presente para protegê-lo. De fato, partiria em busca de uma cura, sem dar nenhum prazo de seu retorno.
Por um lado Rorik sentiu-se grato, até mesmo comovido, mas por outro não gostava nem um pouco daquela história, principalmente da idéia de ela lhe dar ordens. Não bastava ser Rorik, o Enfermo, também era Rorik, o Incapaz. Aquilo tudo deixou seu humor ainda mais negro. Além disso, não gostava de pensar nela longe de sua visão, ainda mais se arriscando à toa, quando era ele que resolveria a situação. Mas com o passar dos dias, enquanto se preparava para partir em viagem, dava por si pensando em quando veria a Guardiã novamente acima de qualquer outra preocupação, que aumentava diariamente à medida que o ferimento no braço piorava. Mas logo descobriu que empunhar Fagulha-na-Noite amenizava a dor.
Ele partiu na calada da noite para evitar que alguém tentasse impedi-lo, levando consigo um cavalo veloz de pequeno porte e poucas provisões, uma vez que seus espiões diziam ter encontrado um templo das videntes nas montanhas do extermo norte, que não ficavam muito longe. Sem contar que poderia pilhar nas aldeias que ficavam no caminho. Rorik não gostava da idéia de roubar, mas não queria levantar suspeitas acerca de seu paradeiro. Agora deveria se tornar Rorik, o Ladino.
Não encontrou maiores dificuldades no caminho. Porém, se foi fácil chegar até o pé das montanhas, escalar uma delas não seria tão simples. Arriscaria a maior delas para evitar qualquer desperdício de forças, e se fosse a montanha errada não precisaria subir mais, apenas descer. Mas não seria uma missão fácil.
A princípio tudo correu como o esperado, embora fosse um avanço lento e frustrante, com muitos revéses e ida e voltas. O lugar parecia mais um labirinto do que uma montanha e o frio crescia a cada dia que passava. E foi na noite mais fria de todas que algo inusitado ocorreu. A dor no braço de Rorik era quase insuportável e nem mesmo Fagulha-na-Noite lhe trazia algum alívio. De fato, o brilho da espada parecia diminuir à medida que ele subia mais e mais, e Rorik não sabia dizer se era por estar longe da Guardiã, o que até então seria a hipótese mais plausível, ou se algo ou alguém na montanha afetava seu poder. O rapaz pensava no assunto do fundo de sua barraca quando um clarão roxo iluminou os céus com um estrondo similar ao de um trovão, só que ao invés de diminuir até cessar o som aumentava, e o pior de tudo era que vinha montanha abaixo, na direção de Rorik. Ele escapou da avalanche por detalhe e só tinha Fagulha-na-Noite em punho. Todo o resto se perdera.
Rorik não sabia explicar o que tinha acontecido, mas fosse o que fosse tinha certeza que não estava mais sozinho. Ou seja, estava próximo de seu destino, porque ninguém nunca disse que as videntes eram amistosas.
Outras armadilhas aguardavam no caminho, mas Rorik superou todos os obstáculos, até atingir um platõ. Mais acima, no ponto mais alto da montanha, havia uma espécie de templo feito de árvores curvadas para dentro, e lá não havia neve. De fato, havia até mesmo vegetação, flores e plantas dos mais diversos tipos, como um oásis no deserto gelado. Rorik não deu mais de dez passos antes de ser impedido por uma voz na escuridão.
- Parado aí, Guardião.
Era uma voz de mulher, provavelmente idosa, embora não desprovida de força. Sussurros seguiam as palavras. Rorik hesitou.
- Por que me chama assim?
- Está previsto - disse a voz de imediato, sendo acompanhada pelos sussurros. Rorik percebeu que eles repetiam o que a primeira voz dizia. E também eram vozes femininas, só que menos graves.
De repente a voz tomou forma, revelando uma mulher de manto roxo e pés descalços, e mais atrás surgiram outras três, todas vestidas da mesma forma. Elas usavam o manto por cima da cabeça, ocultando metade do rosto. Como Rorik imaginava, a mulher na frente era bem mais velha do que as outras, quase cadavérica. Dois círculos de um roxo mais escuro brilhavam através do pano no lugar onde deveriam estar seus olhos. As outras três não tinham a mesma sorte e pareciam não enxergar, porque andavam agarradas uma às outras, como se buscassem equilíbrio. Mas Rorik não tinha muita paciência para aquele tipo de coisa.
- Explique-se.
- Apenas uma pergunta, Guardião - disse a velha, erguendo um dedo ossudo. - Só uma.
- Isso é o que veremos, anciã.
Então ergueu Fagulha-na-Noite e imediatamente as três mulheres mais jovens soltaram um guincho agudo. O som era tão alto que Rorik derrubou a espada.
- Você ousa trazer uma arma dos divinos para uma casa de conhecimento? - gritou a velha. - Deveria matá-lo aí mesmo!
Rorik se agachou para tentar pegar Fagulha-na-Noite, mas descobriu que tinha perdido todo o movimento do braço direito, então caiu no chão sob o barulho ensurdecedor dos gritos. Ele ouviria seus próprios gritos de dor se eles não estivessem abafados pelos berros das mulheres.
- Se livre dela que eu faço elas se calarem, Guardião! Chute-a montanha abaixo!
- Não!
- Faça agora ou não terá nenhuma das duas respostas que procura!
Com um grito de raiva Rorik se ergueu e chutou a espada pela beirada do platô. Ele acompanhou sua queda com desgosto, seguindo o rastro deixado por seu brilho, até vê-la desaparecer ao atingir uma nuvem. Então a velha afugentou as jovens com um grito ainda mais alto. Quando se virou outra vez, Rorik estava em cima dela.
- Veja o que me fez fazer! - tinha agarrado o pulso da velha com a mão boa e gritava rente a seu rosto. - Terei minha resposta agora?
- Você ousa pôr as mãos em uma vidente? - disse ela em tom ofendido. - Saiba seu lugar, garoto!
A velha soltou o pulso com um movimento rápido e tocou no ferimento de Rorik com a ponta do dedo indicador. Rorik gritou de dor e caiu de joelhos. Rindo, a velha mantinha o dedo na ferida.
- Você não passa de um garotinho vaidoso e orgulhoso que não sabe seu lugar! - deu uma risada. - Como diminuiu o padrão de seleção dos divinos!
Ela gargalhou mais uma vez e subitamente tirou o dedo da ferida. Rorik caiu de lado, levando a mão ao ferimento. Nunca sentira tanto frio.
- Não que alguma vez tenha sido muito alto...
A velha se afastou e deixou Rorik agoniando no chão.
- Bom, venha se ainda estiver vivo. Nenhuma vidente jamais negou conhecimento, mesmo que seja para um rapazinho burro como você. Corajoso, sem dúvida, mas burro.
Rorik se levantou com alguma dificuldade, amaldiçoando a própria estupidez, então seguiu a velha. Ela o conduziu por uma escada escavada na pedra, depois por um caminho que dava uma volta em torno de um penhasco, e finalmente por outra escada que levava ao topo do mesmo penhasco, onde se erguia o templo que Rorik vira antes. Era quente lá em cima e o ar tinha um cheiro agradável.
A velha notou a curiosidade do rapaz e sorriu.
- Isso que você está vendo é magia, Guardião, não um daqueles truques que os divinos usam para se exibir. O que nós usamos vem da terra e volta para a terra, sem nenhum acordo, preço ou sacrifício. Tudo que é natural vem de graça. Tente se lembrar disso.
Rorik seguiu a velha até a entrada do templo, onde havia uma bacia e uma ânfora sobre uma mesa de pedra rodeada por flores, e foi para lá que os dois se dirigiram. As outras mulheres observavam da entrada do templo.
- Não se preocupe com elas, Guardião, venha.
- Por que você me chama de Guardião?
- Porque é o que você é, não? Ou se é uma coisa ou se não é, mesmo que ainda não se tenha tornado, ou por algum motivo tenha deixado de ser.
A velha falava enquanto enchia a bacia com a água cristalina da ânfora. Ela se posicionou do outro lado da mesa e fez sinal para Rorik se aproximar.
- Agora se aproxime.
Hesitando, Rorik obedeceu. Ele olhou dentro da bacia e só enxergou o próprio reflexo na água.
- Esvazie a mente e me faça uma das duas perguntas que realmente deseja saber a resposta. Mas tenha cuidado! Porque uma representa a morte e a outra representa a vida.
Rorik tirou os olhos da bacia e olhou para o céu em busca de compreensão. De fato tinha duas perguntas a fazer: a primeira dizia respeito a Guardiã, se havia como livrá-la de seu serviço e assim libertar Lyanna, e a segunda interessava o próprio Rorik, que procurava uma cura para o veneno de Lâmina da Perdição. Ele não se via capaz de escolher entre uma ou outra, portanto ficou um bom tempo olhando o céu, até que de repente uma estrela surgiu onde antes havia uma nuvem, o que fez Rorik sorrir. Era tudo o que precisava para tomar uma decisão.
- As estrelas são belas, não é? - disse a velha de repente, seguindo seu olhar. Rorik olhou para ela e assentiu com um sorriso sonhador no rosto. - Mas também são tão frias e distantes.
As palavras da velha fizeram o sorriso parecer falso em seu rosto, mas ele tirou qualquer receio da mente, dando por si pensando em Lyanna. Não podia deixar de pensar em seu sorriso, no modo delicado que ela se movia, seu toque gentil...
- Vejo que tomou sua decisão, Guardião.
Rorik assentiu. Mesmo que não conseguisse a resposta que esperava e perdesse a chance de encontrar uma cura, a Guardiã podia dar sorte em sua busca pelo mesmo objetivo, e sem dúvida ficaria grata com a sua tentativa de libertá-la, então poderia mudar de idéia a seu respeito. Ele confiava nela a ponto de tomar essa decisão sem pensar duas vezes.
- Como pode se libertar um Guardião do serviço?
A velha fez um ruído de compreensão e tocou com a ponto do dedo indicador no meio da bacia.
- Agora olhe dentro da bacia.
- O que eu verei?
- Eu só posso responder o que diz respeito a você, Guardião, e para tanto eu preciso ver o que lhe aguarda, aquilo que já foi determinado, quer você saiba ou não. Agora... olhe.
Rorik se aproximou e a princípio não viu muita coisa além das ondulações na água. Então, de repente, viu um rosto se formar na bacia. A primeira coisa que chamou sua atenção foi a esqualidez do rosto, tão cadavérico quanto o da velha, depois viu uma barba negra muito comprida, e por fim um par de brilhantes olhos azuis. Então teve uma súbita visão da foice prestes a atingir seu rosto e caiu para trás dando um grito de terror.
- O que isso significa? - gritou para a velha, sem fôlego.
Ele levantou e olhou outra vez para a bacia, mas dessa vez viu o próprio reflexo novamente. Olhou para a velha em busca de compreensão.
- Bem - começou a velha, se afastando da mesa e caminhando para a beira do penhasco, onde ficou fitando a distância. - O único método que eu conheço para livrar um Guardião do serviço é tomando seu lugar, mas um indivído precisa atingir uma série de critérios para tanto, como ter recebido o toque por exemplo. Agora, o que isso tem a ver com você, meu jovem, é uma história completamente diferente...
- Responda de uma vez - rosnou Rorik, que tinha a cabeça parecendo subitamente pesada, sem falar no frio que já tomava metade de seu tronco.
- Muito bem - disse a velha e se virou para ele. - Mas saiba que esse caminho só lhe trará morte, Rorik Deschain.
Então a velha deu a resposta.
Algumas semanas se passaram até Rorik descer a montanha, portanto tinha uma barba negra cobrindo o rosto, além de estar bem magro. Não pudera encontrar Fagulha-na-Noite e o frio do veneno começava a afetar seu outro braço. Ele deu uma última olhada para a montanha antes de seguir seu caminho, lembrando de todas as dificuldades que passou até atingir seu topo, somente para voltar sentindo ainda mais frio. Além disso, perdeu o pouco que levara consigo, inclusive sua espada como não se permitia esquecer, só ganhando em troca o conhecimento sombrio das videntes. Tampouco poderia partilhar com a Guardiã o que tinha descoberto. Para completar, não tinha cavalo e a aldeia mais próxima ficava a muitos quilômetros de distância, então deveria prosseguir a pé por mais alguns dias. De repente se deu conta que sequer planejara a viagem de volta e a descoberta fez um arrepio percorrer toda a extensão de sua espinha.
Não demorou muitos dias e Rorik viu que uma tempestade se aproximava. Redemoinhos de neve desciam montanha abaixo, cobrindo tudo de branco, e naquela mesma noite caíram sobre ele. À medida que avançava, Rorik percebeu que sua única esperança era encontrar alguém no caminho, embora não fosse muito provável. De fato, perdera todo o senso de direção, então deu por si andando em círculos. Rorik já tinha aceitado a morte quando enxergou um brilho tênue acima dos redemoinhos. Lágrimas brotaram de seus olhos e se congelaram em seu rosto quando viu que se tratava de uma estrela, provavelmente a mesma que vira no topo da montanha, e usando ela como guia conseguiu achar uma saída da tempestade, encontrando abrigo em uma aldeia. As estrelas podiam estar distantes, mas nem por isso deixavam de oferecer calor.
Porém, estava muito doente devido ao frio e a fome, além de ter perdido a sensibilidade da parte superior do corpo, portanto era incapaz de prosseguir por conta própria. Os aldeões não o conheciam e nada podiam fazer para aplacar seu frio. Ninguém na região tinha visto doença como aquela, uma febre gelada, que também não era hipotermia. Rorik tinha breves períodos de lucidez, mas geralmente passava os dias dormindo, perdido em pesadelos. O anjo da morte agora era ele e ninguém podia detê-lo. Homens, demônios, todos caiam sob sua foice. Certa vez viu até mesmo a Guardiã em seu caminho, e por mais que tenha tentado impedir não pôde evitar avançar sobre ela, subjugando-a com facilidade. Mas quando se aproximou para dar o golpe fatal ela se transformou em Lyanna e a foice parou na metade do caminho. A mulher tinha lágrimas nos olhos e o olhava com terror, implorando para ser poupada, e Rorik só queria deter suas lágrimas, vê-la sorrir novamente, mas nas mãos só tinha Lâmina da Perdição. Então acordou e chorou de medo pela loucura que tomava conta dele.
Quando desmaiou novamente teve um sonho estranho no qual estava voando e podia ver o mundo todo lá embaixo. As montanhas, o deserto, o Abismo lançando sua fumaça e até mesmo as poucas florestas que restavam, lá no Sul. De repente estava de volta em sua cama, no calor de sua tenda, e a Guardiã fazia vigília por ele. Por um momento Rorik achou que tinha morrido e aquele era o Paraíso. Não só isso, como desejava que fosse verdade, porque não queria se tornar o anjo da morte. Acima de tudo, não queria machucar Lyanna. Então imaginou seu funeral, a mulher chorando agarrada em seu corpo e todos os homens reunidos em sua volta, viu sua mãe e os irmãos mais ao longe, com Gilead ao fundo antes de sua queda. Trombetas soavam de toda parte, saudando Rorik como herói, e todos com excessão de Lyanna estavam felizes. Mãos começaram a erguer seu corpo e a mulher lutava em vão para impedir. Rorik sentiu raiva dela. Não entendia que se ele morresse o anjo da morte não poderia machucá-la? Dessa forma ela seria feliz. Todos seriam felizes. Porque Rorik era o anjo da morte e só trazia desgraça aqueles a sua volta.
Mas então sentiu uma mão quente sobre a sua, aplacando o frio. Logo percebeu que estava recuperando a sensibilidade da parte superior do corpo. O braço direito continuava frio, mas retornara ao estado do dia em que sofrera o corte, como se não tivesse passado um dia desde então. Não demorou muito e Rorik conseguiu abrir os olhos. No começo tinha a visão turva, ainda se acostumando à claridade, mas logo o rosto de Lyanna começou a tomar forma. A princípio Rorik sorriu, só que não demorou a ver que a mulher estava em agonia. Ela estava massageando seu braço com as duas mãos, através das quais emanavam um brilho amarelo, e Rorik viu a parte da armadura que cobria todo o seu braço passar para ele, envolvendo seu membro ferido. Ele podia ver que aquilo era extenuante para Lyanna, mas o alívio era tamanho que não pôde evitar que ela fosse até o fim. Quando terminou, Lyanna desabou no chão, ao lado da cama.
- Está feito - disse ela, sem fôlego. - Não está curado, mas é o melhor que eu posso fazer.
Rorik não pôde evitar se sentir culpado. Ele pousou a mão sobre sua cabeça, sem saber o que dizer.
- É do seu agrado? - perguntou ela, magoada.
- Obrigado - se resumiu Rorik a responder. - Perdão.
Então fez um carinho em seu rosto, agradecido. Ele não sentiu a pele dela, afinal, tinha o braço protegido pela armadura, mas mesmo assim ela sorriu ao seu toque.
- Preciso descansar agora.
Lyanna se ergueu com dificuldade e deu um longo bocejo. Rorik pensou em convidar ela a lhe fazer companhia, mas sabia que ela não aceitaria. Não agora pelo menos. Mais uma vez a viu se retirar e não disse uma palavra. Porém, ela hesitou diante da aba de abertura, olhando rapidamente para trás.
- O que você foi fazer nas montanhas afinal?
Rorik já tinha pensado no que iria responder se lhe fizessem essa pergunta.
- Fui atrás das videntes, ver se elas poderiam nos ajudar.
Lyanna olhou para ele com um misto de desaprovação e condescendência.
- E encontrou alguma coisa?
- Não.
Ela suspirou.
- Melhor assim.
Sorrindo, se aproximou de Rorik e lhe deu um beijo na bochecha.
- Você vai ficar bem? - perguntou Rorik antes de ela sair.
Ela se virou e deu um sorriso cansado.
- Já sou bem grandinha, Rorik, sei cuidar de mim mesma - então apontou o dedo indicador para ele. - Mas você trate de se cuidar.
Rorik riu.
- Sim, senhora.
Então ela fez uma reverência e quando se ergueu outra vez já era a Guardiã. Foi ovacionada quando saiu da tenda. Rorik permaneceu um longo tempo sorrindo, pensando em quando a veria novamente. Por ela, enfrentaria a escuridão. Por ela, enfrentaria até mesmo o anjo da morte. E naquela noite Rorik não teve nenhum pesadelo.
Dessa vez até mesmo o dragão permitiria que Rorik, o Penitente, e Lyanna Estrela-Guia tivessem um momento de paz...

sexta-feira, 22 de julho de 2011

O Guardião Pt. 3

Apesar de tudo estar saindo de acordo com os planos do dragão, ele ainda não estava satisfeito. Por isso visitou as câmaras fumegantes do Abismo com o intuito de forjar a arma mais terrível já criada, usando suas próprias escamas como matéria prima, devido a sua impenetrabilidade. Terminado o trabalho, ele desceu novamente para ter com Tecedeira, e a aranha mais uma vez fez sua parte, batizando a lâmina com seu veneno. Por fim, o dragão convocou o capitão de sua guarda, um demônio da mais pura estirpe, e lhe entregou a arma, com a qual ele ceifaria o exército inimigo. Logo ela ficaria conhecida como a Lâmina da Perdição, uma foice feita toda em pele e aço, trazendo ruína a todos que cruzassem seu caminho. Porém, nada foi dito sobre o destino de quem a empunhasse, bem como era a intenção do dragão...
Mas Rorik também não estava satisfeito.
Isso porque a Guardiã desapareceu sem dar nenhuma explicação após o episódio na duna, e quando voltou, quase um mês depois, agia como se nada tivesse acontecido. E, durante sua ausência, Rorik procurou todos os clérigos a seu serviço, querendo saber notícias de sua amada, enquanto a guerra ficava em segundo plano. Porém, eles foram de pouca ajuda, portanto Rorik começou a questionar sobre a natureza dos celestiais, especificamente a respeito dos Guardiões, se não havia como livrar um Guardião do serviço. Em seu íntimo, via nessa possibilidade a única chance de eles ficarem juntos, bem como poupar a Guardiã de seu sofrimento. Ele só precisava vencer a guerra, então poderia cuidar dela. Era o mínimo que podia fazer por sua estrela-guia.
Apreensivos, os clérigos não incentivaram aquela conversa, mas depois de muito insistência da parte do rapaz, disseram que as videntes poderiam saber algo a respeito, embora tenham avisado que nada bom poderia sair do contato com elas, nem da ambição em mudar o que fora estabelecido pelos deuses. Rorik não deu ouvidos a eles e se retirou do templo sob os gritos de "blasfêmia".
Naquela mesma noite, após passar horas olhando em vão para o céu vazio, Rorik teve um pesadelo no qual uma terrível escuridão surgia do Abismo, logo em seguida sendo acompanhada pelo forma maciça do dragão, todo envolto em sombras. Só que dessa vez a Guardiã não estava lá para lutar em seu lugar. Ao invés disso, a mulher por trás da armadura estava sozinha na duna deles e gritava de terror, prestes a ser engolida pela escuridão. Mas a atenção do dragão estava toda sobre uma aldeia de muros altos, embora parecesse muito frágil diante do perigo que se aproximava, e Rorik não demorou a perceber que se tratava de Gilead, o lar ancestral da famíla Deschain. Ele também não demorou a perceber que não poderia salvar a ambos. Percebendo a dúvida de Rorik, a mulher começou a gritar por seu nome, implorando para que ele viesse salvá-la. Sem nem pestanejar, o rapaz correu na direção dela.
Atrás dele, Gilead ardia em chamas, e das cinzas surgiu uma figura esquelética e alada segurando uma foice, só uma silhueta diante do fogo. Ele ceifava a vida dos aldeões como um verdadeiro anjo da morte e não havia mais nenhum sinal do dragão.
Por sua vez, Rorik só tinha olhos para a mulher. Ela estava aguardando por ele de braços abertos, agradecida e emocionada, mas uma estranha transformação ocorria à medida que o rapaz se aproximava, mudando a forma da mulher para algo aterrorizante. Sua pigmentação começou a escurecer e novos membros surgiam do seu tronco rasgando a pele como se fosse papel, até que toda a pele se desfez em pedaços, revelando uma monstruosidade peluda e com oito olhos cintilantes, diante dos quais Rorik se viu reduzido a uma presa. Então a fumaça vinda da aldeia em ruínas avançou sobre os dois, cobrindo tudo de negro, e da escuridão só se ouvia um bater de asas lento e contínuo, cada vez mais próximo. De repente, uma lâmina em forma de lua cintilou no ar e Rorik desembainhou Fagulha-na-Noite, iluminando a escuridão a tempo de ver a lâmina da foice caindo sobre ele, impossível de ser detida. Porém, o mais assustador de tudo não era a morte eminente, e sim os brilhantes olhos azuis da criatura segurando a foice, tão parecidos com os seus.
Rorik acordou gritando, querendo o calor de sua estrela. Mas só sentia frio.
Na manhã seguinte pretendia ir atrás das videntes, mulheres misterioras que viviam nos picos mais altos das montanhas e diziam ter acesso a uma estranha fonte de energia, que supostamente lhes permitia vislumbrar o futuro. Alguns chamavam de magia, outros de blasfêmia. Só que no instante em que arrumava suas coisas para partir viu o familiar risco brilhante no céu e seu coração se encheu de expectativa. Ele correu na direção dele e sequer desviou os olhos diante da explosão de luz que sempre prenunciava a chegada da Guardiã. Então ela se ergueu, majestosa.
Rorik se aproximou devagar, sorrindo.
- Já estava ficando preocupado - disse animadamente. - Aquele dia, na duna...
Mas ele parou diante da virada de cabeça abrupta da Guardiã.
- Não sei do que está falando.
De imediato, ela alçou voo, parando do outro lado do acampamento para atender os feridos. Rorik ficou parado, sem entender. Teria sido tudo obra de sua imaginação? Ele permaneceu paralisado até ser chamado por um de seus capitães. O inimigo se movia mais uma vez, portanto as videntes teriam de esperar.
Rorik fez bom uso da distração, protagonizando uma matança poucas vezes vista, da qual saiu incólume. No final foi preciso quase meia dúzia de seus próprios soldados para detê-lo tamanha era a sua fúria. Fagulha-na-Noite pingava sangue e Rorik a olhou com desprezo. Então jogou a espada aos pés da Guardiã e nem esperou para ver sua reação.
Naquela noite prometeu a si mesmo que não visitaria a duna, mas aqueles brilhantes olhos azuis do pesadelo pertubavam sua mente e talvez a Guardiã não quisesse demonstrar nada diante dos outros, por isso se fez de desentendida. Como pudera ser tão burro? Era óbvio que se tratava disso. Então saiu xingando para o céu estrelado. E lá estava ela, sozinha na duna. Algo naquela visão fez os olhos de Rorik se encherem de lágrimas. A lembrança de arremessar Fagulha-na-Noite na direção da Guardiã fez ele sentir uma culpa tremenda, como se tivesse violado alguma lei divina, embora em seu íntimo não pudesse pensar em nenhuma. Mas não adiantava. Tinha ferido sua estrela, a única coisa no mundo todo que queria proteger, então aceitaria qualquer retribuição de sua parte.
Ele se aproximou com a cabeça baixa e ficou de joelhos diante dela. Então... nada. Rorik ergueu os olhos e percebeu que ela sequer percebera sua presença. Mas não iria dar o braço a torcer, ah, não, permaneceria ali até ser notado. E ele permaneceria. E permaneceria.
Foi só quando a cor do céu começou a mudar de preto para um azul-arroxeado que a Guardiã se virou para olhar Rorik. Ela tirou Fagulha-na-Noite da bainha e ofereceu o cabo ao rapaz.
- Sua espada, cavaleiro.
Rorik olhou a espada e depois o rosto metálico da Guardiã. Ele hesitou no primeiro momento, mas logo entendeu que não haveria outra oportunidade de receber seu perdão se não aceitasse a espada de volta, independente de aquilo ser digno ou não. Então pegou no cabo da espada com todo o cuidado do mundo e a depositou de volta à bainha presa em seu cinto. Mas antes mesmo de ficar sobre os dois pés a Guardiã já tinha alçado voo.
Mesmo assim sentiu um tremendo alívio, como se tivesse tirado um peso enorme das costas. Agora estava tudo em ordem outra vez. E era só ele nunca mais machucar a Guardiã que continuaria assim. Entretanto, Rorik teve o mesmo pesadelo da noite anterior durante um cochilo, só que dessa vez acordara com sede de batalha. Outro dia de matança aguardava Fagulha-na-Noite.
As batalhas seguintes seguiram o mesmo padrão, mas os soldados aprenderam a evitar seu comandante, deixando caminho livre para ele destroçar os inimigos. Rorik proporcionava verdadeiros espetáculos de morte e se enclausurava em sua tenda após terminar o serviço. Até que começaram a surgir rumores sobre um capitão do exército inimigo que adquirira a fama de imbatível, pois diziam que ele possuía uma arma tão formidável quanto a de Rorik, através da qual poderia equilibrar a disputa. Não demorou a chegarem informações a respeito da tal arma. Todos olhavam Rorik esperando que ele fosse dar combate com o mesmo entusiasmo de sempre, mas mal sabiam eles dos pesadelos que tiravam o sono do rapaz, muito menos que envolviam uma foice como a do capitão inimigo. O exército inimigo se aproximava e Rorik permanecia impassível.
Os estandartes feitos de pele e ossos já podiam ser vistos à distância, mas ninguém ousava adentrar a tenda de Rorik, tamanho era o medo de despertar sua ira. Ele ordenara que mudassem sua tenda para o alto da duna, dizendo que assim teria uma visão melhor do campo de batalha, quando na verdade só queria poder enxergar a chegada da Guardiã antes de qualquer um. Porque embora não ficassem a sós desde que fizeram as pazes, Rorik queria ver a Guardiã mais do que tudo e dividir seus medos com ela, assim como a própria mulher dentro da armadura dividira com ele. Só que dessa vez não iria até ela. Não, agora era a vez dela procurá-lo, do contrário que lutasse sem ele.
Rorik estava sentado sem camisa na cama, olhando fixamente para a armadura desmontada no chão, e também para Fagulha-na-Noite, que jazia embainhada ao lado, quando uma mão metálica levantou a aba de entrada, através da qual entrou a Guardiã. Mas Rorik só olhou de soslaio para ela e voltou a encarar o chão. A Guardiã se aproximou em silêncio e viu aquilo tudo com um ar de confusão.
- Por que não está pronto? - perguntou ela de repente. - Os exércitos já estão diante um do outro lá fora.
Rorik fez um ruído de compreensão.
- É por isso que veio aqui então? - tinha um sorriso irônico no rosto quando disse aquilo e então se curvou para pegar Fagulha-na-Noite.
Por um momento a Guardiã ficou sem reação, mas logo encontrou palavras.
- Por que outro motivo eu viria aqui? - indagou ela, curvando a cabeça para o lado como um gato, embora sua voz não soasse tão firme como de costume.
- Não sei, me diga você.
Dessa vez a Guardiã ficou sem resposta. Rorik tinha virado as costas para ela e começado a afivelar o cinto, ajustando a bainha da espada, quando sentiu uma mão delicada percorrer toda a extensão de suas costas. Ele tremeu de excitação com o toque e ficou sem reação por alguns instantes. Por algum motivo aquilo o fez lembrar do pesadelo e a terrível metamorfose da mulher dentro da armadura, quando ela se transformou em algo saído do Abismo, prenunciando a chegada da escuridão. Mas logo tirou o pensamento da cabeça e se virou de novo para a Guardiã, que agora já estava mais afastada, embora ainda tivesse as duas mãos expostas.
A princípio nenhum dos dois arriscou dizer nada, apenas ficaram ouvindo os rugidos que vinham de fora, esperando o outro falar primeiro. Então a Guardiã baixou a cabeça para a altura do peito de Rorik e ele seguiu os olhos dela. Ali estava seu peito nu cheio de cicatrizes feias e mal cicatrizadas, muito piores que qualquer ferida da mulher dentro da armadura, e elas estavam espalhadas por todo seu corpo. De repente, a Guardiã revelou o rosto.
- Eu... - balbuciou ela, desviando o olhar. Tinha uma aparência cansada e confusa. - Eu posso dar um jeito nisso.
Rorik não pôde evitar sentir um pouco de pena dela. Então deu um sorriso orgulhoso.
- Guarde para quem precisa.
Virou as costas e tratou de vestir a armadura. Não ouviu a Guardiã se retirar, portanto sabia que ela continuava na tenda.
- Você vem então?
Rorik deu de ombros.
- Acho que você consegue se virar um pouco sem mim.
Não demorou muito e ele ouviu o farfalhar das asas da Guardiã, que rasgou a lona ao sair, sendo ovacionada pelos homens. Rorik sorriu de amargura ao ouvir aquilo. "Estou ganhando essa guerra sozinho e ela que recebe os aplausos?", pensou enquanto colocava o elmo. Não sabia explicar o motivo, mas se sentia muito cansado, como se tivesse acabado de resistir a uma força invisível. Tinha os passos pesados quando saiu da tenda. De súbito se fez o silêncio, porque lá vinha Rorik em toda sua glória, trajado como um verdadeiro senhor da guerra. Foi então que notou os olhares desconfiados e assustados dos homens, a forma como cobiçavam Fagulha-na-Noite, embora não ousassem tentar tirá-la de sua posse. Tomado de uma súbita tristeza, Rorik se deu conta que não era visto como um igual, e também não era um celestial como a Guardiã, portanto não era uma coisa nem outra. Era Rorik, o Pária.
Mas outra coisa acabou chamando sua atenção. Olhou de um lado para o outro, mas não viu a Guardiã em lugar algum. Então chamou um de seus capitões e ficou sabendo que ela tinha reunido os homens mais descansados para dar combate à vanguarda inimiga, comandada por Issh'tal e sua Lâmina da Perdição. Mais uma vez, ela tinha ido lutar em seu lugar. Rorik organizou as coisas da melhor forma que pôde e partiu atrás dela, temendo o pior.
Quando chegou no campo de batalha viu duas tropas menores se degladiando, enquanto o grosso de ambos os exércitos ainda tentava se organizar, uma vez que tinham ficado sem liderança. Rorik não demorou muito a entender a estratégia do inimigo. A Guardiã tentava atrair Issh'tal para combate singular, mas o demônio era esperto e evitava suas investidas, preferindo ferir os inimigos mais frágeis, o que além de reduzir pouco a pouco a tropa da Guardiã, desviava sua atenção da batalha. Ela não sabia se lutava ou protegia seus homens. E daquela forma o inimigo venceria antes mesmo da batalha começar.
Rorik reuniu uma pequena tropa para repor as perdas da Guardiã e se atirou no meio da batalha. Issh'tal sorriu ao vê-lo e então voltou sua foice à Guardiã, que aproveitava a chegada do rapaz para tratar dos feridos, portanto estava vulnerável. O demônio mandou todo a sua tropa para cima de Rorik e foi lentamente na direção da Guardiã, arranhando o chão com a ponta da lâmina enquanto se aproximava, e no calor do momento Rorik só pôde desembainhar Fagulha-na-Noite e arremessá-la contra Iss'tal, ficando desarmado diante de toda a tropa inimiga. O inimigo caiu em cima dele antes que pudesse ver se se sua manobra dera resultado. Rorik sabia que entre ele e a Guardiã, seus homens escolheriam a segunda, e inclusive contava com isso. De repente ficou tudo escuro e só o que Rorik sentia era dor.
Seu mundo era todo feito de escuridão e ele finalmente estava em paz, mas então ouviu alguém gritar seu nome, e não era uma voz metálica. Era uma voz feminina e cheia de emoção. Rorik sentiu tanta alegria naquele momento que poderia morrer. De repente seu mundo se enchera de luz, e quando deu por si viu a Guardiã dando combate a Issh'tal com as duas espadas em mãos, enquanto o demônio recuava diante de sua fúria. Rorik foi erguido por seus homens e viu a tropa de Issh'tal reduzida a cinzas.
- Ela salvou a sua vida, senhor - disse um deles. - Foi uma luz brilhante como eu nunca vi na minha vida.
As lágrimas corriam soltas no rosto desfigurado de Rorik, que se desvencilhou das mãos que o seguravam e avançou cambaleando para onde a Guardiã e Issh'tal travavam combate singular, tudo isso enquanto o grosso de ambos os exércitos finalmente se juntava à luta, chocando escudos com um baque ensurdecedor. Mas Rorik pouco ligou para aquilo, só tratou de avançar e avançar, escapadando da morte por detalhe inúmeras vezes, enquanto a batalha se desenrolava a sua volta. E não foi com surpresa que ele viu a Guardiã mais uma vez dar a Issh'tal a oportunidade de dar cabo dela, pois ela embainhara Fagulha-na-Noite para poder lutar com uma mão e curar com a outra, ficando em desvantagem em relação a arma de duas mãos do demônio. Rorik previra aquilo e chegou a tempo de impedir com as próprias mãos um golpe que de outra maneira seria fatal. Ele segurou com as duas mãos o cabo irregular da foice, sendo perfurado no processo e lutando com Issh'tal pela posse da mesma, e ainda receberia um corte no braço antes da Guardiã finalmente despachar o demônio. Ferido, Issh'tal bateu em retirada, deixando um Rorik irreconhecível nos braços da Guardiã.
- Ah, Rorik - disse ela com o rosto à mostra, derramando lágrimas. Uma mão exposta acariciava seu rosto.
- Por que você faz eu me machucar assim?
Não havia ausência de mágoa na voz de Rorik, mas mesmo assim ele agarrou a mão da Guardiã junto da dele, desmaiando enquanto olhava aquela que para ele era a maior preciosidade do mundo, ainda que o céu e o inferno estivessem entre os dois. E era a mulher que Rorik amava, não a Guardiã.
Quando acordou em sua tenda, sem fazer a menor idéia de quanto tempo se passara, Rorik tinha sido curado de todos os ferimentos da última batalha, com a excessão do corte que recebera no braço. O mais estranho era que a ferida era gelada ao toque e todo o braço de Rorik parecia frio. Mas um movimento na escuridão tirou aquilo de sua mente. Ele tateou nervosamente a cama em busca da espada, mas de repente viu seu brilho cortar o ar, e das sombras surgiu a mulher por dentro da armadura, vestindo roupas comuns e com Fagulha-na-Noite em punho. Seus olhos estavam marejados e cheios de emoção, mas um sorriso travesso tentava em vão esconder o fato, como se fossem um segredo. Rorik nunca a achara tão bela.
- Procurando por isso? - então deu uma gargalhada agradável e sentou na cama. Ela deu um toque delicado no ombro de Rorik, como se quisesse dizer alguma coisa e não soubesse como, então embainhou a espada e a colocou gentilmente do lado dele.
Rorik absorvia cada movimento dela como se fosse o mais suave néctar. Ela o olhava sem entender.
- O que foi?
Ali estava ela, diante dele e totalmente exposta como sempre sonhara, mas Rorik subitamente ficou sem palavras. A visão da aranha do pesadelo fez ele franzir o cenho, e aquilo pareceu aumentar o frio que tomava conta de seu braço, então deu por si querendo chorar.
- Meu braço - disse finalmente com alguma dificuldade.
Uma sombra perpassou o rosto da mulher, mas ela logo engoliu em seco, se forçando a falar. Antes disso, porém, pousou a mão no peito de Rorik, como se aquilo fosse aliviar o peso do que diria a seguir.
- Eu não consegui curar - sua voz soou fraca, mas não havia ausência de preocupação. - Não sei o que houve, mas não consegui. Também não sei como evitar que o veneno se alastre.
Ambos ficaram em silêncio diante do significado daquilo. Uma lágrima solitária brotou nos olhos da mulher, mas ela secou com a parte de trás da mão antes de deixá-la escorrer. Rorik teria preferido que ela deixasse escorrer.
Passado algum tempo ela levantou e deu um sorriso sem jeito para Rorik. Assim como na vez que a Guardiã se revelou para ele na duna, Rorik queria mais do que tudo dizer para ela ficar, mas entendeu que desde a primeira vez que a viu, cruzando o céu como um raio de luz, já estavam dizendo adeus. Ela mesmo se prolongava a ir embora, como se uma parte dela não quisesse sair.
Rorik a viu iluminada pela luz da lua que vinha do buraco na lona e por um momento a odiou com todas as forças. Queria xingar ela, mandá-la embora ou simplesmente machucá-la. Ainda não estava morto, tinha forças para lutar, e faria tudo por ela. Porém, apesar de toda a sua dor, só encontrou uma coisa a dizer:
- Qual é seu nome?
Aquilo pegou a mulher de surpresa, como se fosse algo que ela tinha esquecido, então deu um sorriso de compreensão e olhou Rorik com gratidão.
- Lyanna - disse enquanto a armadura se montava em torno dela, deixando apenas o rosto à mostra. - Costumavam me chamar de Lyanna.
Então sorriu uma última vez e escondeu o rosto, desaparecendo pelo buraco na lona, o qual Rorik olhou por um longo tempo. De repente, desatou a chorar. Aquilo fez o frio no braço aumentar e não conseguia deixar de pensar no pesadelo. Nem no sono encontraria paz. De fato, teria desejado morrer ali mesmo se soubesse o que viria a seguir...