Apesar de tudo estar saindo de acordo com os planos do dragão, ele ainda não estava satisfeito. Por isso visitou as câmaras fumegantes do Abismo com o intuito de forjar a arma mais terrível já criada, usando suas próprias escamas como matéria prima, devido a sua impenetrabilidade. Terminado o trabalho, ele desceu novamente para ter com Tecedeira, e a aranha mais uma vez fez sua parte, batizando a lâmina com seu veneno. Por fim, o dragão convocou o capitão de sua guarda, um demônio da mais pura estirpe, e lhe entregou a arma, com a qual ele ceifaria o exército inimigo. Logo ela ficaria conhecida como a Lâmina da Perdição, uma foice feita toda em pele e aço, trazendo ruína a todos que cruzassem seu caminho. Porém, nada foi dito sobre o destino de quem a empunhasse, bem como era a intenção do dragão...
Mas Rorik também não estava satisfeito.
Isso porque a Guardiã desapareceu sem dar nenhuma explicação após o episódio na duna, e quando voltou, quase um mês depois, agia como se nada tivesse acontecido. E, durante sua ausência, Rorik procurou todos os clérigos a seu serviço, querendo saber notícias de sua amada, enquanto a guerra ficava em segundo plano. Porém, eles foram de pouca ajuda, portanto Rorik começou a questionar sobre a natureza dos celestiais, especificamente a respeito dos Guardiões, se não havia como livrar um Guardião do serviço. Em seu íntimo, via nessa possibilidade a única chance de eles ficarem juntos, bem como poupar a Guardiã de seu sofrimento. Ele só precisava vencer a guerra, então poderia cuidar dela. Era o mínimo que podia fazer por sua estrela-guia.
Apreensivos, os clérigos não incentivaram aquela conversa, mas depois de muito insistência da parte do rapaz, disseram que as videntes poderiam saber algo a respeito, embora tenham avisado que nada bom poderia sair do contato com elas, nem da ambição em mudar o que fora estabelecido pelos deuses. Rorik não deu ouvidos a eles e se retirou do templo sob os gritos de "blasfêmia".
Naquela mesma noite, após passar horas olhando em vão para o céu vazio, Rorik teve um pesadelo no qual uma terrível escuridão surgia do Abismo, logo em seguida sendo acompanhada pelo forma maciça do dragão, todo envolto em sombras. Só que dessa vez a Guardiã não estava lá para lutar em seu lugar. Ao invés disso, a mulher por trás da armadura estava sozinha na duna deles e gritava de terror, prestes a ser engolida pela escuridão. Mas a atenção do dragão estava toda sobre uma aldeia de muros altos, embora parecesse muito frágil diante do perigo que se aproximava, e Rorik não demorou a perceber que se tratava de Gilead, o lar ancestral da famíla Deschain. Ele também não demorou a perceber que não poderia salvar a ambos. Percebendo a dúvida de Rorik, a mulher começou a gritar por seu nome, implorando para que ele viesse salvá-la. Sem nem pestanejar, o rapaz correu na direção dela.
Atrás dele, Gilead ardia em chamas, e das cinzas surgiu uma figura esquelética e alada segurando uma foice, só uma silhueta diante do fogo. Ele ceifava a vida dos aldeões como um verdadeiro anjo da morte e não havia mais nenhum sinal do dragão.
Por sua vez, Rorik só tinha olhos para a mulher. Ela estava aguardando por ele de braços abertos, agradecida e emocionada, mas uma estranha transformação ocorria à medida que o rapaz se aproximava, mudando a forma da mulher para algo aterrorizante. Sua pigmentação começou a escurecer e novos membros surgiam do seu tronco rasgando a pele como se fosse papel, até que toda a pele se desfez em pedaços, revelando uma monstruosidade peluda e com oito olhos cintilantes, diante dos quais Rorik se viu reduzido a uma presa. Então a fumaça vinda da aldeia em ruínas avançou sobre os dois, cobrindo tudo de negro, e da escuridão só se ouvia um bater de asas lento e contínuo, cada vez mais próximo. De repente, uma lâmina em forma de lua cintilou no ar e Rorik desembainhou Fagulha-na-Noite, iluminando a escuridão a tempo de ver a lâmina da foice caindo sobre ele, impossível de ser detida. Porém, o mais assustador de tudo não era a morte eminente, e sim os brilhantes olhos azuis da criatura segurando a foice, tão parecidos com os seus.
Rorik acordou gritando, querendo o calor de sua estrela. Mas só sentia frio.
Na manhã seguinte pretendia ir atrás das videntes, mulheres misterioras que viviam nos picos mais altos das montanhas e diziam ter acesso a uma estranha fonte de energia, que supostamente lhes permitia vislumbrar o futuro. Alguns chamavam de magia, outros de blasfêmia. Só que no instante em que arrumava suas coisas para partir viu o familiar risco brilhante no céu e seu coração se encheu de expectativa. Ele correu na direção dele e sequer desviou os olhos diante da explosão de luz que sempre prenunciava a chegada da Guardiã. Então ela se ergueu, majestosa.
Rorik se aproximou devagar, sorrindo.
- Já estava ficando preocupado - disse animadamente. - Aquele dia, na duna...
Mas ele parou diante da virada de cabeça abrupta da Guardiã.
- Não sei do que está falando.
De imediato, ela alçou voo, parando do outro lado do acampamento para atender os feridos. Rorik ficou parado, sem entender. Teria sido tudo obra de sua imaginação? Ele permaneceu paralisado até ser chamado por um de seus capitães. O inimigo se movia mais uma vez, portanto as videntes teriam de esperar.
Rorik fez bom uso da distração, protagonizando uma matança poucas vezes vista, da qual saiu incólume. No final foi preciso quase meia dúzia de seus próprios soldados para detê-lo tamanha era a sua fúria. Fagulha-na-Noite pingava sangue e Rorik a olhou com desprezo. Então jogou a espada aos pés da Guardiã e nem esperou para ver sua reação.
Naquela noite prometeu a si mesmo que não visitaria a duna, mas aqueles brilhantes olhos azuis do pesadelo pertubavam sua mente e talvez a Guardiã não quisesse demonstrar nada diante dos outros, por isso se fez de desentendida. Como pudera ser tão burro? Era óbvio que se tratava disso. Então saiu xingando para o céu estrelado. E lá estava ela, sozinha na duna. Algo naquela visão fez os olhos de Rorik se encherem de lágrimas. A lembrança de arremessar Fagulha-na-Noite na direção da Guardiã fez ele sentir uma culpa tremenda, como se tivesse violado alguma lei divina, embora em seu íntimo não pudesse pensar em nenhuma. Mas não adiantava. Tinha ferido sua estrela, a única coisa no mundo todo que queria proteger, então aceitaria qualquer retribuição de sua parte.
Ele se aproximou com a cabeça baixa e ficou de joelhos diante dela. Então... nada. Rorik ergueu os olhos e percebeu que ela sequer percebera sua presença. Mas não iria dar o braço a torcer, ah, não, permaneceria ali até ser notado. E ele permaneceria. E permaneceria.
Foi só quando a cor do céu começou a mudar de preto para um azul-arroxeado que a Guardiã se virou para olhar Rorik. Ela tirou Fagulha-na-Noite da bainha e ofereceu o cabo ao rapaz.
- Sua espada, cavaleiro.
Rorik olhou a espada e depois o rosto metálico da Guardiã. Ele hesitou no primeiro momento, mas logo entendeu que não haveria outra oportunidade de receber seu perdão se não aceitasse a espada de volta, independente de aquilo ser digno ou não. Então pegou no cabo da espada com todo o cuidado do mundo e a depositou de volta à bainha presa em seu cinto. Mas antes mesmo de ficar sobre os dois pés a Guardiã já tinha alçado voo.
Mesmo assim sentiu um tremendo alívio, como se tivesse tirado um peso enorme das costas. Agora estava tudo em ordem outra vez. E era só ele nunca mais machucar a Guardiã que continuaria assim. Entretanto, Rorik teve o mesmo pesadelo da noite anterior durante um cochilo, só que dessa vez acordara com sede de batalha. Outro dia de matança aguardava Fagulha-na-Noite.
As batalhas seguintes seguiram o mesmo padrão, mas os soldados aprenderam a evitar seu comandante, deixando caminho livre para ele destroçar os inimigos. Rorik proporcionava verdadeiros espetáculos de morte e se enclausurava em sua tenda após terminar o serviço. Até que começaram a surgir rumores sobre um capitão do exército inimigo que adquirira a fama de imbatível, pois diziam que ele possuía uma arma tão formidável quanto a de Rorik, através da qual poderia equilibrar a disputa. Não demorou a chegarem informações a respeito da tal arma. Todos olhavam Rorik esperando que ele fosse dar combate com o mesmo entusiasmo de sempre, mas mal sabiam eles dos pesadelos que tiravam o sono do rapaz, muito menos que envolviam uma foice como a do capitão inimigo. O exército inimigo se aproximava e Rorik permanecia impassível.
Os estandartes feitos de pele e ossos já podiam ser vistos à distância, mas ninguém ousava adentrar a tenda de Rorik, tamanho era o medo de despertar sua ira. Ele ordenara que mudassem sua tenda para o alto da duna, dizendo que assim teria uma visão melhor do campo de batalha, quando na verdade só queria poder enxergar a chegada da Guardiã antes de qualquer um. Porque embora não ficassem a sós desde que fizeram as pazes, Rorik queria ver a Guardiã mais do que tudo e dividir seus medos com ela, assim como a própria mulher dentro da armadura dividira com ele. Só que dessa vez não iria até ela. Não, agora era a vez dela procurá-lo, do contrário que lutasse sem ele.
Rorik estava sentado sem camisa na cama, olhando fixamente para a armadura desmontada no chão, e também para Fagulha-na-Noite, que jazia embainhada ao lado, quando uma mão metálica levantou a aba de entrada, através da qual entrou a Guardiã. Mas Rorik só olhou de soslaio para ela e voltou a encarar o chão. A Guardiã se aproximou em silêncio e viu aquilo tudo com um ar de confusão.
- Por que não está pronto? - perguntou ela de repente. - Os exércitos já estão diante um do outro lá fora.
Rorik fez um ruído de compreensão.
- É por isso que veio aqui então? - tinha um sorriso irônico no rosto quando disse aquilo e então se curvou para pegar Fagulha-na-Noite.
Por um momento a Guardiã ficou sem reação, mas logo encontrou palavras.
- Por que outro motivo eu viria aqui? - indagou ela, curvando a cabeça para o lado como um gato, embora sua voz não soasse tão firme como de costume.
- Não sei, me diga você.
Dessa vez a Guardiã ficou sem resposta. Rorik tinha virado as costas para ela e começado a afivelar o cinto, ajustando a bainha da espada, quando sentiu uma mão delicada percorrer toda a extensão de suas costas. Ele tremeu de excitação com o toque e ficou sem reação por alguns instantes. Por algum motivo aquilo o fez lembrar do pesadelo e a terrível metamorfose da mulher dentro da armadura, quando ela se transformou em algo saído do Abismo, prenunciando a chegada da escuridão. Mas logo tirou o pensamento da cabeça e se virou de novo para a Guardiã, que agora já estava mais afastada, embora ainda tivesse as duas mãos expostas.
A princípio nenhum dos dois arriscou dizer nada, apenas ficaram ouvindo os rugidos que vinham de fora, esperando o outro falar primeiro. Então a Guardiã baixou a cabeça para a altura do peito de Rorik e ele seguiu os olhos dela. Ali estava seu peito nu cheio de cicatrizes feias e mal cicatrizadas, muito piores que qualquer ferida da mulher dentro da armadura, e elas estavam espalhadas por todo seu corpo. De repente, a Guardiã revelou o rosto.
- Eu... - balbuciou ela, desviando o olhar. Tinha uma aparência cansada e confusa. - Eu posso dar um jeito nisso.
Rorik não pôde evitar sentir um pouco de pena dela. Então deu um sorriso orgulhoso.
- Guarde para quem precisa.
Virou as costas e tratou de vestir a armadura. Não ouviu a Guardiã se retirar, portanto sabia que ela continuava na tenda.
- Você vem então?
Rorik deu de ombros.
- Acho que você consegue se virar um pouco sem mim.
Não demorou muito e ele ouviu o farfalhar das asas da Guardiã, que rasgou a lona ao sair, sendo ovacionada pelos homens. Rorik sorriu de amargura ao ouvir aquilo. "Estou ganhando essa guerra sozinho e ela que recebe os aplausos?", pensou enquanto colocava o elmo. Não sabia explicar o motivo, mas se sentia muito cansado, como se tivesse acabado de resistir a uma força invisível. Tinha os passos pesados quando saiu da tenda. De súbito se fez o silêncio, porque lá vinha Rorik em toda sua glória, trajado como um verdadeiro senhor da guerra. Foi então que notou os olhares desconfiados e assustados dos homens, a forma como cobiçavam Fagulha-na-Noite, embora não ousassem tentar tirá-la de sua posse. Tomado de uma súbita tristeza, Rorik se deu conta que não era visto como um igual, e também não era um celestial como a Guardiã, portanto não era uma coisa nem outra. Era Rorik, o Pária.
Mas outra coisa acabou chamando sua atenção. Olhou de um lado para o outro, mas não viu a Guardiã em lugar algum. Então chamou um de seus capitões e ficou sabendo que ela tinha reunido os homens mais descansados para dar combate à vanguarda inimiga, comandada por Issh'tal e sua Lâmina da Perdição. Mais uma vez, ela tinha ido lutar em seu lugar. Rorik organizou as coisas da melhor forma que pôde e partiu atrás dela, temendo o pior.
Quando chegou no campo de batalha viu duas tropas menores se degladiando, enquanto o grosso de ambos os exércitos ainda tentava se organizar, uma vez que tinham ficado sem liderança. Rorik não demorou muito a entender a estratégia do inimigo. A Guardiã tentava atrair Issh'tal para combate singular, mas o demônio era esperto e evitava suas investidas, preferindo ferir os inimigos mais frágeis, o que além de reduzir pouco a pouco a tropa da Guardiã, desviava sua atenção da batalha. Ela não sabia se lutava ou protegia seus homens. E daquela forma o inimigo venceria antes mesmo da batalha começar.
Rorik reuniu uma pequena tropa para repor as perdas da Guardiã e se atirou no meio da batalha. Issh'tal sorriu ao vê-lo e então voltou sua foice à Guardiã, que aproveitava a chegada do rapaz para tratar dos feridos, portanto estava vulnerável. O demônio mandou todo a sua tropa para cima de Rorik e foi lentamente na direção da Guardiã, arranhando o chão com a ponta da lâmina enquanto se aproximava, e no calor do momento Rorik só pôde desembainhar Fagulha-na-Noite e arremessá-la contra Iss'tal, ficando desarmado diante de toda a tropa inimiga. O inimigo caiu em cima dele antes que pudesse ver se se sua manobra dera resultado. Rorik sabia que entre ele e a Guardiã, seus homens escolheriam a segunda, e inclusive contava com isso. De repente ficou tudo escuro e só o que Rorik sentia era dor.
Seu mundo era todo feito de escuridão e ele finalmente estava em paz, mas então ouviu alguém gritar seu nome, e não era uma voz metálica. Era uma voz feminina e cheia de emoção. Rorik sentiu tanta alegria naquele momento que poderia morrer. De repente seu mundo se enchera de luz, e quando deu por si viu a Guardiã dando combate a Issh'tal com as duas espadas em mãos, enquanto o demônio recuava diante de sua fúria. Rorik foi erguido por seus homens e viu a tropa de Issh'tal reduzida a cinzas.
- Ela salvou a sua vida, senhor - disse um deles. - Foi uma luz brilhante como eu nunca vi na minha vida.
As lágrimas corriam soltas no rosto desfigurado de Rorik, que se desvencilhou das mãos que o seguravam e avançou cambaleando para onde a Guardiã e Issh'tal travavam combate singular, tudo isso enquanto o grosso de ambos os exércitos finalmente se juntava à luta, chocando escudos com um baque ensurdecedor. Mas Rorik pouco ligou para aquilo, só tratou de avançar e avançar, escapadando da morte por detalhe inúmeras vezes, enquanto a batalha se desenrolava a sua volta. E não foi com surpresa que ele viu a Guardiã mais uma vez dar a Issh'tal a oportunidade de dar cabo dela, pois ela embainhara Fagulha-na-Noite para poder lutar com uma mão e curar com a outra, ficando em desvantagem em relação a arma de duas mãos do demônio. Rorik previra aquilo e chegou a tempo de impedir com as próprias mãos um golpe que de outra maneira seria fatal. Ele segurou com as duas mãos o cabo irregular da foice, sendo perfurado no processo e lutando com Issh'tal pela posse da mesma, e ainda receberia um corte no braço antes da Guardiã finalmente despachar o demônio. Ferido, Issh'tal bateu em retirada, deixando um Rorik irreconhecível nos braços da Guardiã.
- Ah, Rorik - disse ela com o rosto à mostra, derramando lágrimas. Uma mão exposta acariciava seu rosto.
- Por que você faz eu me machucar assim?
Não havia ausência de mágoa na voz de Rorik, mas mesmo assim ele agarrou a mão da Guardiã junto da dele, desmaiando enquanto olhava aquela que para ele era a maior preciosidade do mundo, ainda que o céu e o inferno estivessem entre os dois. E era a mulher que Rorik amava, não a Guardiã.
Quando acordou em sua tenda, sem fazer a menor idéia de quanto tempo se passara, Rorik tinha sido curado de todos os ferimentos da última batalha, com a excessão do corte que recebera no braço. O mais estranho era que a ferida era gelada ao toque e todo o braço de Rorik parecia frio. Mas um movimento na escuridão tirou aquilo de sua mente. Ele tateou nervosamente a cama em busca da espada, mas de repente viu seu brilho cortar o ar, e das sombras surgiu a mulher por dentro da armadura, vestindo roupas comuns e com Fagulha-na-Noite em punho. Seus olhos estavam marejados e cheios de emoção, mas um sorriso travesso tentava em vão esconder o fato, como se fossem um segredo. Rorik nunca a achara tão bela.
- Procurando por isso? - então deu uma gargalhada agradável e sentou na cama. Ela deu um toque delicado no ombro de Rorik, como se quisesse dizer alguma coisa e não soubesse como, então embainhou a espada e a colocou gentilmente do lado dele.
Rorik absorvia cada movimento dela como se fosse o mais suave néctar. Ela o olhava sem entender.
- O que foi?
Ali estava ela, diante dele e totalmente exposta como sempre sonhara, mas Rorik subitamente ficou sem palavras. A visão da aranha do pesadelo fez ele franzir o cenho, e aquilo pareceu aumentar o frio que tomava conta de seu braço, então deu por si querendo chorar.
- Meu braço - disse finalmente com alguma dificuldade.
Uma sombra perpassou o rosto da mulher, mas ela logo engoliu em seco, se forçando a falar. Antes disso, porém, pousou a mão no peito de Rorik, como se aquilo fosse aliviar o peso do que diria a seguir.
- Eu não consegui curar - sua voz soou fraca, mas não havia ausência de preocupação. - Não sei o que houve, mas não consegui. Também não sei como evitar que o veneno se alastre.
Ambos ficaram em silêncio diante do significado daquilo. Uma lágrima solitária brotou nos olhos da mulher, mas ela secou com a parte de trás da mão antes de deixá-la escorrer. Rorik teria preferido que ela deixasse escorrer.
Passado algum tempo ela levantou e deu um sorriso sem jeito para Rorik. Assim como na vez que a Guardiã se revelou para ele na duna, Rorik queria mais do que tudo dizer para ela ficar, mas entendeu que desde a primeira vez que a viu, cruzando o céu como um raio de luz, já estavam dizendo adeus. Ela mesmo se prolongava a ir embora, como se uma parte dela não quisesse sair.
Rorik a viu iluminada pela luz da lua que vinha do buraco na lona e por um momento a odiou com todas as forças. Queria xingar ela, mandá-la embora ou simplesmente machucá-la. Ainda não estava morto, tinha forças para lutar, e faria tudo por ela. Porém, apesar de toda a sua dor, só encontrou uma coisa a dizer:
- Qual é seu nome?
Aquilo pegou a mulher de surpresa, como se fosse algo que ela tinha esquecido, então deu um sorriso de compreensão e olhou Rorik com gratidão.
- Lyanna - disse enquanto a armadura se montava em torno dela, deixando apenas o rosto à mostra. - Costumavam me chamar de Lyanna.
Então sorriu uma última vez e escondeu o rosto, desaparecendo pelo buraco na lona, o qual Rorik olhou por um longo tempo. De repente, desatou a chorar. Aquilo fez o frio no braço aumentar e não conseguia deixar de pensar no pesadelo. Nem no sono encontraria paz. De fato, teria desejado morrer ali mesmo se soubesse o que viria a seguir...
Mas Rorik também não estava satisfeito.
Isso porque a Guardiã desapareceu sem dar nenhuma explicação após o episódio na duna, e quando voltou, quase um mês depois, agia como se nada tivesse acontecido. E, durante sua ausência, Rorik procurou todos os clérigos a seu serviço, querendo saber notícias de sua amada, enquanto a guerra ficava em segundo plano. Porém, eles foram de pouca ajuda, portanto Rorik começou a questionar sobre a natureza dos celestiais, especificamente a respeito dos Guardiões, se não havia como livrar um Guardião do serviço. Em seu íntimo, via nessa possibilidade a única chance de eles ficarem juntos, bem como poupar a Guardiã de seu sofrimento. Ele só precisava vencer a guerra, então poderia cuidar dela. Era o mínimo que podia fazer por sua estrela-guia.
Apreensivos, os clérigos não incentivaram aquela conversa, mas depois de muito insistência da parte do rapaz, disseram que as videntes poderiam saber algo a respeito, embora tenham avisado que nada bom poderia sair do contato com elas, nem da ambição em mudar o que fora estabelecido pelos deuses. Rorik não deu ouvidos a eles e se retirou do templo sob os gritos de "blasfêmia".
Naquela mesma noite, após passar horas olhando em vão para o céu vazio, Rorik teve um pesadelo no qual uma terrível escuridão surgia do Abismo, logo em seguida sendo acompanhada pelo forma maciça do dragão, todo envolto em sombras. Só que dessa vez a Guardiã não estava lá para lutar em seu lugar. Ao invés disso, a mulher por trás da armadura estava sozinha na duna deles e gritava de terror, prestes a ser engolida pela escuridão. Mas a atenção do dragão estava toda sobre uma aldeia de muros altos, embora parecesse muito frágil diante do perigo que se aproximava, e Rorik não demorou a perceber que se tratava de Gilead, o lar ancestral da famíla Deschain. Ele também não demorou a perceber que não poderia salvar a ambos. Percebendo a dúvida de Rorik, a mulher começou a gritar por seu nome, implorando para que ele viesse salvá-la. Sem nem pestanejar, o rapaz correu na direção dela.
Atrás dele, Gilead ardia em chamas, e das cinzas surgiu uma figura esquelética e alada segurando uma foice, só uma silhueta diante do fogo. Ele ceifava a vida dos aldeões como um verdadeiro anjo da morte e não havia mais nenhum sinal do dragão.
Por sua vez, Rorik só tinha olhos para a mulher. Ela estava aguardando por ele de braços abertos, agradecida e emocionada, mas uma estranha transformação ocorria à medida que o rapaz se aproximava, mudando a forma da mulher para algo aterrorizante. Sua pigmentação começou a escurecer e novos membros surgiam do seu tronco rasgando a pele como se fosse papel, até que toda a pele se desfez em pedaços, revelando uma monstruosidade peluda e com oito olhos cintilantes, diante dos quais Rorik se viu reduzido a uma presa. Então a fumaça vinda da aldeia em ruínas avançou sobre os dois, cobrindo tudo de negro, e da escuridão só se ouvia um bater de asas lento e contínuo, cada vez mais próximo. De repente, uma lâmina em forma de lua cintilou no ar e Rorik desembainhou Fagulha-na-Noite, iluminando a escuridão a tempo de ver a lâmina da foice caindo sobre ele, impossível de ser detida. Porém, o mais assustador de tudo não era a morte eminente, e sim os brilhantes olhos azuis da criatura segurando a foice, tão parecidos com os seus.
Rorik acordou gritando, querendo o calor de sua estrela. Mas só sentia frio.
Na manhã seguinte pretendia ir atrás das videntes, mulheres misterioras que viviam nos picos mais altos das montanhas e diziam ter acesso a uma estranha fonte de energia, que supostamente lhes permitia vislumbrar o futuro. Alguns chamavam de magia, outros de blasfêmia. Só que no instante em que arrumava suas coisas para partir viu o familiar risco brilhante no céu e seu coração se encheu de expectativa. Ele correu na direção dele e sequer desviou os olhos diante da explosão de luz que sempre prenunciava a chegada da Guardiã. Então ela se ergueu, majestosa.
Rorik se aproximou devagar, sorrindo.
- Já estava ficando preocupado - disse animadamente. - Aquele dia, na duna...
Mas ele parou diante da virada de cabeça abrupta da Guardiã.
- Não sei do que está falando.
De imediato, ela alçou voo, parando do outro lado do acampamento para atender os feridos. Rorik ficou parado, sem entender. Teria sido tudo obra de sua imaginação? Ele permaneceu paralisado até ser chamado por um de seus capitães. O inimigo se movia mais uma vez, portanto as videntes teriam de esperar.
Rorik fez bom uso da distração, protagonizando uma matança poucas vezes vista, da qual saiu incólume. No final foi preciso quase meia dúzia de seus próprios soldados para detê-lo tamanha era a sua fúria. Fagulha-na-Noite pingava sangue e Rorik a olhou com desprezo. Então jogou a espada aos pés da Guardiã e nem esperou para ver sua reação.
Naquela noite prometeu a si mesmo que não visitaria a duna, mas aqueles brilhantes olhos azuis do pesadelo pertubavam sua mente e talvez a Guardiã não quisesse demonstrar nada diante dos outros, por isso se fez de desentendida. Como pudera ser tão burro? Era óbvio que se tratava disso. Então saiu xingando para o céu estrelado. E lá estava ela, sozinha na duna. Algo naquela visão fez os olhos de Rorik se encherem de lágrimas. A lembrança de arremessar Fagulha-na-Noite na direção da Guardiã fez ele sentir uma culpa tremenda, como se tivesse violado alguma lei divina, embora em seu íntimo não pudesse pensar em nenhuma. Mas não adiantava. Tinha ferido sua estrela, a única coisa no mundo todo que queria proteger, então aceitaria qualquer retribuição de sua parte.
Ele se aproximou com a cabeça baixa e ficou de joelhos diante dela. Então... nada. Rorik ergueu os olhos e percebeu que ela sequer percebera sua presença. Mas não iria dar o braço a torcer, ah, não, permaneceria ali até ser notado. E ele permaneceria. E permaneceria.
Foi só quando a cor do céu começou a mudar de preto para um azul-arroxeado que a Guardiã se virou para olhar Rorik. Ela tirou Fagulha-na-Noite da bainha e ofereceu o cabo ao rapaz.
- Sua espada, cavaleiro.
Rorik olhou a espada e depois o rosto metálico da Guardiã. Ele hesitou no primeiro momento, mas logo entendeu que não haveria outra oportunidade de receber seu perdão se não aceitasse a espada de volta, independente de aquilo ser digno ou não. Então pegou no cabo da espada com todo o cuidado do mundo e a depositou de volta à bainha presa em seu cinto. Mas antes mesmo de ficar sobre os dois pés a Guardiã já tinha alçado voo.
Mesmo assim sentiu um tremendo alívio, como se tivesse tirado um peso enorme das costas. Agora estava tudo em ordem outra vez. E era só ele nunca mais machucar a Guardiã que continuaria assim. Entretanto, Rorik teve o mesmo pesadelo da noite anterior durante um cochilo, só que dessa vez acordara com sede de batalha. Outro dia de matança aguardava Fagulha-na-Noite.
As batalhas seguintes seguiram o mesmo padrão, mas os soldados aprenderam a evitar seu comandante, deixando caminho livre para ele destroçar os inimigos. Rorik proporcionava verdadeiros espetáculos de morte e se enclausurava em sua tenda após terminar o serviço. Até que começaram a surgir rumores sobre um capitão do exército inimigo que adquirira a fama de imbatível, pois diziam que ele possuía uma arma tão formidável quanto a de Rorik, através da qual poderia equilibrar a disputa. Não demorou a chegarem informações a respeito da tal arma. Todos olhavam Rorik esperando que ele fosse dar combate com o mesmo entusiasmo de sempre, mas mal sabiam eles dos pesadelos que tiravam o sono do rapaz, muito menos que envolviam uma foice como a do capitão inimigo. O exército inimigo se aproximava e Rorik permanecia impassível.
Os estandartes feitos de pele e ossos já podiam ser vistos à distância, mas ninguém ousava adentrar a tenda de Rorik, tamanho era o medo de despertar sua ira. Ele ordenara que mudassem sua tenda para o alto da duna, dizendo que assim teria uma visão melhor do campo de batalha, quando na verdade só queria poder enxergar a chegada da Guardiã antes de qualquer um. Porque embora não ficassem a sós desde que fizeram as pazes, Rorik queria ver a Guardiã mais do que tudo e dividir seus medos com ela, assim como a própria mulher dentro da armadura dividira com ele. Só que dessa vez não iria até ela. Não, agora era a vez dela procurá-lo, do contrário que lutasse sem ele.
Rorik estava sentado sem camisa na cama, olhando fixamente para a armadura desmontada no chão, e também para Fagulha-na-Noite, que jazia embainhada ao lado, quando uma mão metálica levantou a aba de entrada, através da qual entrou a Guardiã. Mas Rorik só olhou de soslaio para ela e voltou a encarar o chão. A Guardiã se aproximou em silêncio e viu aquilo tudo com um ar de confusão.
- Por que não está pronto? - perguntou ela de repente. - Os exércitos já estão diante um do outro lá fora.
Rorik fez um ruído de compreensão.
- É por isso que veio aqui então? - tinha um sorriso irônico no rosto quando disse aquilo e então se curvou para pegar Fagulha-na-Noite.
Por um momento a Guardiã ficou sem reação, mas logo encontrou palavras.
- Por que outro motivo eu viria aqui? - indagou ela, curvando a cabeça para o lado como um gato, embora sua voz não soasse tão firme como de costume.
- Não sei, me diga você.
Dessa vez a Guardiã ficou sem resposta. Rorik tinha virado as costas para ela e começado a afivelar o cinto, ajustando a bainha da espada, quando sentiu uma mão delicada percorrer toda a extensão de suas costas. Ele tremeu de excitação com o toque e ficou sem reação por alguns instantes. Por algum motivo aquilo o fez lembrar do pesadelo e a terrível metamorfose da mulher dentro da armadura, quando ela se transformou em algo saído do Abismo, prenunciando a chegada da escuridão. Mas logo tirou o pensamento da cabeça e se virou de novo para a Guardiã, que agora já estava mais afastada, embora ainda tivesse as duas mãos expostas.
A princípio nenhum dos dois arriscou dizer nada, apenas ficaram ouvindo os rugidos que vinham de fora, esperando o outro falar primeiro. Então a Guardiã baixou a cabeça para a altura do peito de Rorik e ele seguiu os olhos dela. Ali estava seu peito nu cheio de cicatrizes feias e mal cicatrizadas, muito piores que qualquer ferida da mulher dentro da armadura, e elas estavam espalhadas por todo seu corpo. De repente, a Guardiã revelou o rosto.
- Eu... - balbuciou ela, desviando o olhar. Tinha uma aparência cansada e confusa. - Eu posso dar um jeito nisso.
Rorik não pôde evitar sentir um pouco de pena dela. Então deu um sorriso orgulhoso.
- Guarde para quem precisa.
Virou as costas e tratou de vestir a armadura. Não ouviu a Guardiã se retirar, portanto sabia que ela continuava na tenda.
- Você vem então?
Rorik deu de ombros.
- Acho que você consegue se virar um pouco sem mim.
Não demorou muito e ele ouviu o farfalhar das asas da Guardiã, que rasgou a lona ao sair, sendo ovacionada pelos homens. Rorik sorriu de amargura ao ouvir aquilo. "Estou ganhando essa guerra sozinho e ela que recebe os aplausos?", pensou enquanto colocava o elmo. Não sabia explicar o motivo, mas se sentia muito cansado, como se tivesse acabado de resistir a uma força invisível. Tinha os passos pesados quando saiu da tenda. De súbito se fez o silêncio, porque lá vinha Rorik em toda sua glória, trajado como um verdadeiro senhor da guerra. Foi então que notou os olhares desconfiados e assustados dos homens, a forma como cobiçavam Fagulha-na-Noite, embora não ousassem tentar tirá-la de sua posse. Tomado de uma súbita tristeza, Rorik se deu conta que não era visto como um igual, e também não era um celestial como a Guardiã, portanto não era uma coisa nem outra. Era Rorik, o Pária.
Mas outra coisa acabou chamando sua atenção. Olhou de um lado para o outro, mas não viu a Guardiã em lugar algum. Então chamou um de seus capitões e ficou sabendo que ela tinha reunido os homens mais descansados para dar combate à vanguarda inimiga, comandada por Issh'tal e sua Lâmina da Perdição. Mais uma vez, ela tinha ido lutar em seu lugar. Rorik organizou as coisas da melhor forma que pôde e partiu atrás dela, temendo o pior.
Quando chegou no campo de batalha viu duas tropas menores se degladiando, enquanto o grosso de ambos os exércitos ainda tentava se organizar, uma vez que tinham ficado sem liderança. Rorik não demorou muito a entender a estratégia do inimigo. A Guardiã tentava atrair Issh'tal para combate singular, mas o demônio era esperto e evitava suas investidas, preferindo ferir os inimigos mais frágeis, o que além de reduzir pouco a pouco a tropa da Guardiã, desviava sua atenção da batalha. Ela não sabia se lutava ou protegia seus homens. E daquela forma o inimigo venceria antes mesmo da batalha começar.
Rorik reuniu uma pequena tropa para repor as perdas da Guardiã e se atirou no meio da batalha. Issh'tal sorriu ao vê-lo e então voltou sua foice à Guardiã, que aproveitava a chegada do rapaz para tratar dos feridos, portanto estava vulnerável. O demônio mandou todo a sua tropa para cima de Rorik e foi lentamente na direção da Guardiã, arranhando o chão com a ponta da lâmina enquanto se aproximava, e no calor do momento Rorik só pôde desembainhar Fagulha-na-Noite e arremessá-la contra Iss'tal, ficando desarmado diante de toda a tropa inimiga. O inimigo caiu em cima dele antes que pudesse ver se se sua manobra dera resultado. Rorik sabia que entre ele e a Guardiã, seus homens escolheriam a segunda, e inclusive contava com isso. De repente ficou tudo escuro e só o que Rorik sentia era dor.
Seu mundo era todo feito de escuridão e ele finalmente estava em paz, mas então ouviu alguém gritar seu nome, e não era uma voz metálica. Era uma voz feminina e cheia de emoção. Rorik sentiu tanta alegria naquele momento que poderia morrer. De repente seu mundo se enchera de luz, e quando deu por si viu a Guardiã dando combate a Issh'tal com as duas espadas em mãos, enquanto o demônio recuava diante de sua fúria. Rorik foi erguido por seus homens e viu a tropa de Issh'tal reduzida a cinzas.
- Ela salvou a sua vida, senhor - disse um deles. - Foi uma luz brilhante como eu nunca vi na minha vida.
As lágrimas corriam soltas no rosto desfigurado de Rorik, que se desvencilhou das mãos que o seguravam e avançou cambaleando para onde a Guardiã e Issh'tal travavam combate singular, tudo isso enquanto o grosso de ambos os exércitos finalmente se juntava à luta, chocando escudos com um baque ensurdecedor. Mas Rorik pouco ligou para aquilo, só tratou de avançar e avançar, escapadando da morte por detalhe inúmeras vezes, enquanto a batalha se desenrolava a sua volta. E não foi com surpresa que ele viu a Guardiã mais uma vez dar a Issh'tal a oportunidade de dar cabo dela, pois ela embainhara Fagulha-na-Noite para poder lutar com uma mão e curar com a outra, ficando em desvantagem em relação a arma de duas mãos do demônio. Rorik previra aquilo e chegou a tempo de impedir com as próprias mãos um golpe que de outra maneira seria fatal. Ele segurou com as duas mãos o cabo irregular da foice, sendo perfurado no processo e lutando com Issh'tal pela posse da mesma, e ainda receberia um corte no braço antes da Guardiã finalmente despachar o demônio. Ferido, Issh'tal bateu em retirada, deixando um Rorik irreconhecível nos braços da Guardiã.
- Ah, Rorik - disse ela com o rosto à mostra, derramando lágrimas. Uma mão exposta acariciava seu rosto.
- Por que você faz eu me machucar assim?
Não havia ausência de mágoa na voz de Rorik, mas mesmo assim ele agarrou a mão da Guardiã junto da dele, desmaiando enquanto olhava aquela que para ele era a maior preciosidade do mundo, ainda que o céu e o inferno estivessem entre os dois. E era a mulher que Rorik amava, não a Guardiã.
Quando acordou em sua tenda, sem fazer a menor idéia de quanto tempo se passara, Rorik tinha sido curado de todos os ferimentos da última batalha, com a excessão do corte que recebera no braço. O mais estranho era que a ferida era gelada ao toque e todo o braço de Rorik parecia frio. Mas um movimento na escuridão tirou aquilo de sua mente. Ele tateou nervosamente a cama em busca da espada, mas de repente viu seu brilho cortar o ar, e das sombras surgiu a mulher por dentro da armadura, vestindo roupas comuns e com Fagulha-na-Noite em punho. Seus olhos estavam marejados e cheios de emoção, mas um sorriso travesso tentava em vão esconder o fato, como se fossem um segredo. Rorik nunca a achara tão bela.
- Procurando por isso? - então deu uma gargalhada agradável e sentou na cama. Ela deu um toque delicado no ombro de Rorik, como se quisesse dizer alguma coisa e não soubesse como, então embainhou a espada e a colocou gentilmente do lado dele.
Rorik absorvia cada movimento dela como se fosse o mais suave néctar. Ela o olhava sem entender.
- O que foi?
Ali estava ela, diante dele e totalmente exposta como sempre sonhara, mas Rorik subitamente ficou sem palavras. A visão da aranha do pesadelo fez ele franzir o cenho, e aquilo pareceu aumentar o frio que tomava conta de seu braço, então deu por si querendo chorar.
- Meu braço - disse finalmente com alguma dificuldade.
Uma sombra perpassou o rosto da mulher, mas ela logo engoliu em seco, se forçando a falar. Antes disso, porém, pousou a mão no peito de Rorik, como se aquilo fosse aliviar o peso do que diria a seguir.
- Eu não consegui curar - sua voz soou fraca, mas não havia ausência de preocupação. - Não sei o que houve, mas não consegui. Também não sei como evitar que o veneno se alastre.
Ambos ficaram em silêncio diante do significado daquilo. Uma lágrima solitária brotou nos olhos da mulher, mas ela secou com a parte de trás da mão antes de deixá-la escorrer. Rorik teria preferido que ela deixasse escorrer.
Passado algum tempo ela levantou e deu um sorriso sem jeito para Rorik. Assim como na vez que a Guardiã se revelou para ele na duna, Rorik queria mais do que tudo dizer para ela ficar, mas entendeu que desde a primeira vez que a viu, cruzando o céu como um raio de luz, já estavam dizendo adeus. Ela mesmo se prolongava a ir embora, como se uma parte dela não quisesse sair.
Rorik a viu iluminada pela luz da lua que vinha do buraco na lona e por um momento a odiou com todas as forças. Queria xingar ela, mandá-la embora ou simplesmente machucá-la. Ainda não estava morto, tinha forças para lutar, e faria tudo por ela. Porém, apesar de toda a sua dor, só encontrou uma coisa a dizer:
- Qual é seu nome?
Aquilo pegou a mulher de surpresa, como se fosse algo que ela tinha esquecido, então deu um sorriso de compreensão e olhou Rorik com gratidão.
- Lyanna - disse enquanto a armadura se montava em torno dela, deixando apenas o rosto à mostra. - Costumavam me chamar de Lyanna.
Então sorriu uma última vez e escondeu o rosto, desaparecendo pelo buraco na lona, o qual Rorik olhou por um longo tempo. De repente, desatou a chorar. Aquilo fez o frio no braço aumentar e não conseguia deixar de pensar no pesadelo. Nem no sono encontraria paz. De fato, teria desejado morrer ali mesmo se soubesse o que viria a seguir...